Um Horácio iconoclasta
por Viegas Fernandes da Costa
"O Horácio" (Foto: Daniel Zimmermann) |
“O Horácio” narra a história da guerra entre as cidades de Roma e Alba, ao mesmo tempo em que ambas se viam ameçadas pelos etruscos. A fim de não sofrerem muitas baixas, decide-se que por cada cidade lutará apenas um soldado, escolhido através da sorte. Por Roma, este será um Horácio, e por Alba um Curiácio. Ocorre, entretanto, que a irmã do Horácio é justamente a noiva do Curiácio. Ao vencer o combate e executar seu oponente, o Horácio retorna a Roma e encontra sua irmã chorando a morte do noivo, fato que lhe causa grande irritação e o incita a matá-la. As comemorações em Roma cessam, e o herói Horácio passa também a assassino, obrigando a cidade a julgá-lo. Vale lembrar que o texto original remete aos pátrios valores romanos que colocavam o Estado e a família na condição de instituições sagradas, superiores a qualquer veleidade individualista, dentre as quais a própria vida do sujeito. Foi pela pátria que o Horácio lutou, e porque o regozijo pela vitória da pátria deve ser superior ao luto de uma perda individual, o herói assasina sua própria irmã. Entretanto, ao assassinar (desnecessariamente) a irmã, o herói afronta a própria instituição familiar, e por isso deve também ser julgado e punido (no caso, com a própria vida e com uma dupla memória de si: herói e assassino). Para além, “O Horácio” aborda também a complexidade humana, já que em um “homem” habitam muitos homens.
Na montagem dirigida por Carlos Canhameiro a fábula é mantida, e narrada pelos atores em três momentos da peça. Ou seja, por três vezes a história é contada sobre o palco por atores que se alternam na narrativa. Entretanto, o mise-en-scène e a leitura que diretor e atores fazem da obra de Heiner Müller, contrapõem os diferentes tempos da narrativa (o tempo da verossimilhança da fábula, o tempo em que esta foi escrita e o tempo presente – o da montagem). Pós-dramática, intertextual, abusando das referências à cultura de massa, a montagem do atores do grupo de Ribeirão Preto contrapõe o épico ao contemporâneo, ou seja, se por um lado narram a história original escrita pelo dramaturgo, por outro, quando a representam, fazem-no através do deboche e do uso de elementos que nos remetem ao individualismo exacerbado de uma contemporaneidade que não compreende os valores trágicos. Heroísmo, neste caso, é sobreviver em meio à selva urbana e pós-industrial, onde fronteiras se diluem e a saudação da aurora é o “carpe diem”.
Os despojos da batalha (Foto: Ben-Hur Demeneck) |
Terminado o espetáculo, restou ainda o cheiro nauseabundo dos vinte litros de vinho despejados sobre ao palco, mesclado ao de ovos, melancias e outros víveres mais, como que lembrando os despojos de um campo de batalha.
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