O Sarau no Fitub publica o texto "Agreste (Malva-Rosa)", de autoria de Newton Moreno. Sob o título "Malva Rosa", este texto foi montado pelo grupo Casulo Dramaturgia de Atores, da Universidade de Brasília, e abriu o 25. FITUB.
Cena do espetáculo Malva Rosa, apresentado pelo grupo Casulo Dramaturgia de Atores (UnB) na abertura do FITUB de 2012. (Crédito da imagem: Daniel Zimmermann) |
Agreste (Malva-Rosa)
Newton Moreno
A idéia deste texto é servir como exercício de narrativa
para um ator-contador(atriz).O narrador pode assumir todas as outras personagens, viúva,
o padre, o delegado,ou as vozes dos moradores. Ou dispor de outro(s) ator(es)
que cria(m) uma partitura física para determinados momentos da estória. Da
união destas duas linguagens – a oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento
– será feito o espetáculo.
Um(a) narrador(a).
Velho(a) contador(a) de estórias. Daqueles que reúnem um
grupo ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona, pontua
suas histórias com as músicas e acordes que saem de seu instrumento. Ele(a)
recebe o público, dá o clima de cada passagem do texto, pausas, enfim, é o
grande condutor da cena.
CONTADOR(A)
Ele andava muito para encontrá-la. Mas quando se viam,
ficavam, no mínimo, a cinco metros de distância. Nem um centímetro a mais ou a menos. Exatos
cinco metros. Sempre. Uma cerca os separava.
Ela sorria de um lado, ele, do outro.
Ele deixava uma flor na cerca, ela ia buscar.
Ela deixava seu perfume na cerca, ele ia buscar.
Eram tímidos como caramujo. Precaviam-se. Se chegassem muito
perto, Deus sabe o que aconteceria. Tinha alguma coisa no amor deles que não
devia acontecer. Mas aconteceu.
Por meses, anos. Eles e a cerca.
Ele deixava um beijo na madeira do cercado, ela colhia.
Foram se estreitando. Chocando sua intimidade.
Confiavam um no outro, que nem a terra na chuva.
Ele deixava sangue no arame da cerca, ela ia enxugá-lo.
Às vezes, podia demorar um mês para se encontrar. Ela
deixava um pedaço de chita do vestido, ele amarrava na enxada. Era lavrador no Nordeste
do país. Reino de areia e de sede. Era honesto. Forte. De pele marcada. Não dá
para saber a idade. Eram como rochas velhas secando na espera. Sua cultura era
o sol. Sua família era o sol.
Ele deixava cuia. Ela colocava cuscuz. Ele comia, sorrindo.
Ele devolvia a cuia e ela ia buscar e... descobriram um furo na cerca!!!
MÚSICA
Os atores que representam o casal estudam o buraco, cada um
do seu lado. Tempo.
CONTADOR(A)
Incertos. Fingiram não vê-lo. Era um buraco enorme como o
sertão. Fingiram por uma semana. Duas. Um mês. A dúvida.
Mas o buraco crescia, como querendo se exibir. Amostrado. A
cada vez que voltavam, estava maior.
E eles de butuca no furo. Parecia um açude, tentando-os com
sua água escura, escura, cor de enigma.
Se ele tocasse nela? Se ela aceitasse ele?
Às vez, é preciso muita coragem para dar um passo.
TEMPO. Ação dos atores estudando o buraco.
CONTADOR(A)
Naquela manhã, ela foi sozinha. Firmou-se frente ao buraco.
Tomou coragem e cruzou. acalmou-se aos poucos. Respirou, deu um passo, dois.
Parecia um astronauta movimentando-se pela primeira vez na Lua. O ar é o mesmo.
O Sol é o mesmo. O coração era outro. Uma criança brincando onde não devia.
Trelosa. O que ela não sabia, era que ele estava lá. Olhando-a boquiaberto
detrás do arbusto. Ela dançava, grunhia, sujava-se de terra.
Ele sorria.
Quando se perceberam, paralisaram. Mas muito, muito tempo.
Ele ultrapassou o limite dos 5 metros, aos poucos. Alcançou o hálito nervoso dela.
Talvez 45 centímetros. Atravessaram!
MÚSICA. Poeira subindo.
CONTADOR(A)
Correram. De tanta euforia e medo. Levantando uma nuvem de
poeira por onde passavam. Uma nuvem como há muito o Nordeste não via.
Fugiram para longe.
Pensaram: chegariam no mar de tanto passo.
Chegariam, se tivessem corrido esse tanto de chão pro outro
lado.
Avexaram-se no passo com medo de mudar de idéia. O medo deu
pressa. As lágrimas d$ela tentavam marcar no chão um caminho de volta. Num
determinado ponto, deram-se as mãos e tranquilizaram-se.
Perfuraram o Brasil mais fundo. Desmontaram dos pés no meio
da seca. E pensaram que não devia existir um lugar mais árido que aquele. Mas o
Nordeste surpreende a gente. Vai ter sempre uma rês mais murcha e um filho mais
moribundo. O peito arfava de contentamento e pavor. Era como se inspirassem
alegria e expirassem receio. Uma pausa de um silêncio pesado.
Desviavam olhares, cabisbaixos. Não queriam mostrar a dúvida
passeando dentro dos seus olhos. Pior: não queriam ver nos olhos do outro a
dúvida.
Voltar? Mesmo se quisessem, não saberiam como. As pegadas
úmidas já nem existiam; foram sorvidas com força por aquela terra saudosa da
água.
Deitaram os corpos na sombra de um mandacaru. Na margem do
que fora um riacho. O sol já lhes roubara o senso, o tino.
Algo morno crescia na alma. Era um vapor no forno, no berço,
na fôrma do novo afeto. Estavam à beira de um desmaio. A razão já se afogava
com o sol a pino quando uma mulher se desenhava ao longe feito miragem. Veio lenta,
feito a justiça. Aproximou-se.
Falava com eles, mas eles não ouviam uma só palavra. Em
lugar das palavras, só conseguiam escutar os sons das águas. Da sua boca tudo
soava gotas de chuva, barreiros cheios, açude vazando, água da calha. Os sons
dela eram todos molhados. Ela falava como um rio, aquosa.
Foi essa mulher quem os salvou.
Levou ao povoado e tratou de acomodá-los.
Apearam neste arraial. Um pouco de jabá, sombra e água
barrenta e recobraram o prumo.
Lá, eles plantaram a vida.
Música pára. O texto segue com a poeira ainda alta.
Construíram um casebre.
Cercaram com arame, mas para se prender por dentro.
Não queriam conhecer os outros, antes de Saberem de si.
Até então, nada das coisas que se permitem marido e mulher.
A carne é um compromisso mais definitivo. Passou esta cerca, o gado é marcado.
E a noite chegou mais clara que o dia. E os olhos não se
prendiam num abraço de jeito maneira. Mas os dois foram se descobrindo aos poucos.
Ela começou pelo seu rosto. Os cabelos dele. Escuros,
cabeleira cabocla de filho de índio brabo. Farto e espesso. Devia de pesar na mão.
Devia de quebrar pente fraco.
Ele fazia o percurso inverso. Pôs os olho nos cambito da
moça. Umas canela fina, mas bronzeada, que lhe agradaram os sentido.
E assim se seguiu a malevolente investigação: ela descendo
os olhos, ele subindo a vista.
Ela admirava era a dentição dele. Perfeitinha. Os dentes que
faltavam em cima, ele tinha embaixo; e vice-versa. De modo que quando ele sorria,
os dentes se encaixavam num sorriso de um fileira só, mas sem buraco. Mas
sorria bonito ele!
Uma semana depois, eles se tocaram. Antes disso, só as mãos no
meio da correria.
Ouvia-se uma pele rachando na outra, acostumando-se um ao
outro, deixando o tempo passar. Um dia, ela se escondeu embaixo do lençol; ele
apagou o candeeiro. Por anos, este foi o sinal, o código. Sumir-se embaixo do
lençol. Cobrir a luz com o escuro. E ele apagou muito aquele pavio.
Como marido e mulher, viveram por vinte e dois anos.
Até hoje.
Música cessa. Poeira baixa. Homem deitado, mulher a seu
lado.
Velhinhas entoam incelenças.
CONTADOR(A)
Morto, ainda vestido para o trabalho, ele dormia sob a mesa
da sala. Uns candeeiros velavam o corpo, resguardando sua imagem.
As vizinhas foram adentrando. Vinham fazer quarto pro morto.
Já cantavam em suas casas e traziam seus cantos no suspiro da noite. Todas
empregavam as melhores palavras de um parco vocabulário para defini-lo.
VOZES
“Da mais alta estima”, “Pareia de Anjo”, “Elegante como
Jesus”, “Íntegro como uma rocha”.
CONTADOR(A)
Era o mais elaborado do seu idioma. O resto era oração e
cântico.
Uma vizinha sentenciou triste:
VE1
Ele desapareceu a ela.
CONTADOR(A)
Eram um casal benquisto. Discreto. Pouco festivos. Trabalhadores.
Sem filhos. Nem seus nomes eram conhecidos. Seu Zé, Dona Maria, chamavam eles.
(Pausa)
Quieta. A noite parecia uma pergunta difícil. Armava um
bote/arataca.
(Pausa)
A sala povoou de mosquito e de mulher. Nunca tão farta. Nem
de um, nem de outro.
Os homens explodiam seus sentimentos em rojões. Segredavam
às estrelas saudades e estima.
Desenhavam lágrimas de luz no céu.
O padre estava a caminho para a extrema-unção. Amuada e com
fome, a viúva remendava o terno puído para o enterro. O que deveria vesti-lo no
casamento. Alguém lhe trouxe um pedaço de cuscuz com leite. Estacionou agulha e
linha e comeu. Construiu uma figura triste. Do nada, irrompeu numa careta
grotesca e chorou. É muito triste uma mulher comendo e chorando. Ainda mais
viúva. Comeu até a última gota. Levantou-se e caminhou até Jesus. Beijou o
quadro na altura do coração. A vela apagou-se, só se via a luz no coração de
Cristo. Deus!! Jogaria terra sob o morto. Murmurando, pedia força para fazê-lo.
Um cortejo entornou na cama o corpo. Cabisbaixos,
retiraram-se. O silêncio. Um silêncio que esfriava o sangue e que parecia nunca
mais ir embora.
VE1
Quer vesti-lo, fia?
VE2
Ou quer que nóis ajude?
VIÚVA
Não. Pode trocá.
CONTADOR(A)
Um minuto depois, deixou escapar...
VIÚVA
Nunca que vi Etevaldo nu.
CONTADOR(A)
Revelou. Como se nem ela mesma quisesse ouvir aquela
confissão.
VIÚVA
Fechava os olhos quando ele me machucava.
CONTADOR(A)
À noite. No breu. Através do lençol. Desconhecia aquele
corpo, mas amava-o. Confessou, roxa de vergonha. E era a primeira vez que ela
falava com alguém mais que duas sentenças.
VIÚVA
Se for pra eu trocá, vou ter que apagar o candeeiro. Aí vai
dar uma trabalheira da gota serena.
CONTADOR(A)
Pediu que ficassem. Virou de costas e instrumentalizou-as
com o terno. Recolhida. Como se houvesse alguma indecência em ver o marido nu.
As velhinhas vestideira começaram a descascá-lo com técnica e indisfarçável
contentamento.
VE2
Quanta virtude, meu amor.
VE1
Mas quem viu já conhece...
VE2
...Quem nunca viu não sabe o que é.
VE 1 e 2
“Veste esta mortalha
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô vestir
Foi a mãe de Deus.
Amarre este cordão
Quem mandô foi Deus;
Quem mandou marrá
Foi a mãe de Deus
Calça essa meia
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô vestir
Foi a mãe de Deus
Calça esse sapato
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô calçá
Foi a mãe de Deus
Bota no caixão (ou rede)
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô Botá...
VE1 (interrompendo o canto)
Oxente, cadê?.
CONTADOR(A)
A viúva já tinha entregue o paletó.
VE1
Maria de Deus, cadê a trouxa?
CONTADOR(A)
Assustou-se a velha.
VE!
Faz tempo que eu num vejo um, mas isso aqui não é peru.
VE2
Não se avexe não. Espie melhor. Procure direito.
CONTADOR(A)
De costas, a viúva se perguntava ...
VIÚVA
Que trouxa?
VE2
Deve de tá escondido. Às vez tem que ajudar pro bichinho
florescer.
VE1
Mulé, ou eu perdi a vista de vez ou a piroca dele é do
tamanho de um cabelo de sapo.
VE2
Deixe eu lhe ajudar ...
VE1
Menina, cadê a bilola?
VE2
...a bilunga?
VE1
...a bimba?
VE2
....o ganso?
VE1
....a macaca?
VE2
....a peia?
VE1
...o maranhão?
VE1
...a manjuba?
VE2
....a macaxeira?
VE1
....a pomba?
VE2
....o pororó?
VE1
o quiri? Olhe ali.
VE2
Não, não tá.
VE1
Creio em Deus Pai todo Poderoso..
VE2
Olhe a teta.
VE1
Menino, isso parece uma quirica
VE2
Creio em Deus Pai, mulher. É um tabaco.
VE1
É mulher. É mulher.
CONTADOR(A)
Disse e saíram correndo casa afora.
AS VELHAS
O marido dela é fêmea!!
VIÚVA
Posso me virar?
CONTADOR(A)
Súbito, uma multidão fez fila na porta do quarto. Uma mulher
despida sob a cama e outra de costas olhando o retrato de Jesus.
A viúva não entendia nada. Não entendia a morte. Não
entendia homem. Naquele momento, só entendia a perda. Incrédulos, alguns faziam
o sinal da cruz, outros se penduravam na janela para procurar atentos pelo
peru. Já havia quem tomasse partido dela.
VOZ1
“Foi enganada a coitadinha. A sem-vergonha iludiu a
bichinha.”
CONTADOR(A)
Outros mais radicais:
VOZ2
“Elas vieram foi fugida para sujar nosso lugar com essa mundiça.”
CONTADOR(A)
Facções se formavam e a notícia galopava. Nisso, o padre
chegou e foi direto cobrir o defunto, ou melhor, a defunta. Expulsou a todos.
Trancou-se mais ela. Ressuscitou um candeeiro. Tomou coragem várias vezes para
falar algo. Ponderado, começou:
PADRE
Minha filha, você dormiu com uma mulher.
VIÚVA
Não, seu padre, eu dormi com Etevaldo. E nunca que gostei.
Sabia que num devia.
PADRE
Creio em Deus Pai.
VIÚVA
É por isso que o senhor tá brabo?
PADRE
Não.
VIÚVA
Dormimo junto porque ele gostava. Mas ele me jurou
casamento. Se o senhor quiser, eu me caso com ele morto mesmo. O vestido tá
aqui guardado.
PADRE
Não é ele, mocinha. É ela.
VIÚVA
É Etevaldo! Benza ele, benza.
PADRE
Nunca!
VIÚVA
Benza, padre, ele é devoto de Santo Antônio. Temente a Deus.
Queria até casar na Igreja.
PADRE
Vou rezar por você.
VIÚVA
Por mim, não, padre. Reze por ele. Ajude ele a morrer.
PADRE
Não posso. Morreu em pecado escuro.
VIÚVA
Dê descanso a sua alma.
PADRE
Tenho que chamar o bispo na capital.
VIÚVA
Abençoe o sono dele.
PADRE
Não posso! Todo mundo sabe que eu a vi sem roupa.
VIÚVA (chorando e corrigindo)
Etevaldo...
PADRE
Etevaldo. Eles sabem que eu sei que ele é mulé. Pelo menos
se tivesse me chamado antes, nós teríamos feito de outro jeito. Ninguém tomaria conhecimento,
minha filha. Já enterrei gente que nem você e ela... Etevaldo. Gente que morreu
fazendo menos barulho.
(Pausa) Você o ama?
VIÚVA
Num sei o que é isso não. Eu queria ir mais ele.
PADRE
Que Deus lhe abençoe. (Abre a porta aos gritos)
Herege! Herege!!
CONTADOR(A)
Estatelada no chão, viu o padre sair da casa. Levantou-se a
custo. A casa estava vazia agora. Escura. Agarrou-se ao candeeiro. Cobriu seu marido.
Sem investigar-lhe a nudez. Incomodou-a estar só. Queria cantar para ouvir
alguém. Não sabia se Jesus estava com ela ou não. Tinha Deus como uma certeza,
mas às vezes achava que Deus podia aparecer, tomar um café, enrolar um fumo.
Ficar mais íntimo. Gritos rodeavam a casa.
VOZES
“Belzebu!”.
CONTADOR(A)
O delegado apeou na porta dela.
VOZES
“Filhas do Demo!”
CONTADOR (A)
Disparou uns três tiros pro alto para tanger o gado revolto.
VOZES
“Mulesta da peste!”
CONTADOR (A)
Mugiram contrafeitos, mas desmilinguiram-se para dentro das
moitas. Entrou chutando a porta. Arrastava-se e trazia uma nuvem de muriçoca/mosquito
em torno do seu cheiro. Sentou-se de frente para a viúva. Nem olhou o defunto.
DELEGADO
A senhora provocou uma desordem arretada nos arredores. Sabe
quem eu sou? Num me conhece, não? Pois eu sou o delegado. Vim a mando do
Coronel Heráclito, conhece? Conhece, sim.
Trabalhou nas terra dele. Foi ele quem lhe deu sustento.
Disseram que a senhora nunca que pegou bucho.
Uns até desconfiavam, mas acharam que a gala de seu marido
era rala. Coronel num gostou de saber de sua historinha, não.
Mandou vim ver de perto essa semvergonhice. A senhora deve
de saber que amanhã findando o enterro, a senhora vai presa. Isso quer dizer
depois que a senhora arranjar um lugar para enterrar seu macho.
(ri ).
Ele mandou dizer que nas terra dele não se enterra. Vocês
são que nem as quenga, as rapariga,
as catráias, as sapuringa, que são tudo enterrada longe, no
eito, nas brenha esquecida.
Nas terra dele só esterco bom. E vocês fedem a adubo
estragado.
Vai ter que arranjar outro chão para enfiar esse corpo. Se
enterro nesta terra, erva daninha nasce.
(olhando o caixão)
Menino, não é que ele é mulher mesmo? Mas é feio feito um
macho. E tu ainda tratou bem dessa mulé. Tá gorda que nem filho de ladrão quando
o pai tá solto. E tu num sabia que coronel num gosta dessa esfregação de fêmea
com fêmea. Sua saboeira safada. Amanhã, na cadeia, a senhora vai conhecer macho
para nunca mais se confundir.
E para gente num se confundir, para todo mundo saber qual é
a tua raça, coronel quer lhe marcar a cara, como deve se ser feito com todas as
vacas do rebanho. (Sai o delegado)
CONTADOR(A)
Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um
penico. Um escarro. Uma doença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja,
imunda. E não entendia porque. Não tinha cabeça para entendimentos.
Se pudesse falaria no ouvido de Deus. Cantou sua fé com
devoção sincera, o que dá no mesmo. Olhe, Música e Deus ninguém vê.
Fé ninguém toca, nem se mede. Mas juro: acontecia livre cada
centímetro de Jesus, na voz dela.
Tempo de seu canto. Cena parada. Contador a acompanha com
instrumento.
CONTADOR(A)
Lembrou da dor e do alívio. A única imagem era a da mãe. Que
fechava feridas com um sopro e ervas. Lembrou quando sangrou de chico da
primeira vez. Ela gritava: “Mãe, tô vazando sangue”. E a mãe dizia: “É assim
mesmo, fia. Crescer dói, de vez em quando”. Era a imagem de ninho que precisava
para dar-lhe forças. E parecia ter o rosto da mãe desenhado na parede interna
da pálpebra. Sua mãe cuidando da prole. Morrendo de fome, mas alimentando a
cria. Sabia que ela cortaria uma mão se lhes faltasse carne pra comer. Amor? o
que seria isso? Dor alívio? Quando dava
de chover, sua mãe punha os filhos tudo na chuva para aguar. Para crescer
rápido. E só saíam de lá quando a chuva minguasse.
Queria estar com a mãe, queria ter ido no lugar dela quando
morreu. Assim como trocaria de lugar com Etevaldo agora.
(Pausa)
Foi só delegado sair latindo pelo caatinga, e os gritos
voltaram. Um grupo velou a madrugada inteira com impropérios, xingamentos, escárnios,
maldições, pragas. Criaram um ódio.
Desenterraram a pior parte deles.
Desenterraram as piores palavras da língua.
Nem bem a madrugada se punha, trancaram portas e janelas da
casa delas. Envergonhavam-se delas. Queriam apagá-las de suas memórias.
Cercaram a casa. Enterravam-nas vivas.
Não se sabe quem foi, quantos eram. Nem quem acendeu o
primeiro fósforo. Começaram
a incendiar o casebre.
Mal sabiam que, dentro, a viúva agradecia a benção de morrer
com Etevaldo.
Temia muito mais viver sem ele, por certo. Tinha cantado
bonito, Deus tinha lhe ouvido afinal. O fogo já empenava as paredes. Mesmo
assim, a viúva acendeu o candeeiro. Viu-se por inteiro pela primeira vez.
Descobriu então o que era mulher. Pôs-se ao lado de Etevaldo. Beijou-o. Na
boca. O que nunca tinha feito. Abriu-lhe os olhos no meio do beijo, enquanto o
fogo ganhava a casa inteira.
(Pausa)
O dia amanhecia e as fagulhas resistiram queimando por dias.
Cinzas. Silêncio. As fagulhas, em suspenso, como um eco, pairavam, sobre lavouras,
varais e gerações.
FIM
APÊNDICE
CONTADOR
“Uma lavadeira,
um beija-fulô.
Lavava os paninhos
De Nosso Sinhô.
Quanto mais lavava
Mais sangue corria,
Nossa senhora chorava
E o judeu sorria...”
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
Texto originalmente publicado na revista Sala Preta, v. 4, n. 1 (2004). O pdf pode ser lido em http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/75
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