domingo, 10 de julho de 2011

Vida

"Vida"

por Viegas Fernandes da Costa

Por que os cães latem? Latem por latir. Latem porque, por via da dúvida, é melhor latir. Latem para existir. Assim como nós, sempre atentos a tudo, cheios de nossa racionalidade cartesiana ou de nossa filosofia de auto-ajuda, latimos, melhor, nominamos o mundo. O mundo, o que é senão um emaranhado de verbetes e conceitos que, acreditamos, dão sentido a tudo? “No princípio fez-se o verbo”, é bíblico. E tantos de nós dedicamos cada minuto de nossa vida a dar sentido à vida! Mas talvez, sim, talvez, não seria melhor o perambular distraído? “Distraídos venceremos”, diz uma frase. De que natureza seria esta vitória?
“Vida”, espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro com direção de Márcio Abreu, inaugurou os palcos do 24° Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau propondo uma leitura do universo de Paulo Leminski. É possível que assim o seja, mas a mim falaram-me mais forte as vozes de Fernando Pessoa em sua “tabacaria”, e de Beckett com todo seu teatro do absurdo. Assim como em Beckett de Godot, os personagens esperam, e esperando ocupam seu tempo. Em meio a uma sala claustrofóbica, sem janelas e de paredes brancas, quatro personagens ensaiam para uma banda que festejará o jubileu de uma cidade. O que não significa coisa alguma. Para além do ensaio, da música que a banda deve tocar, importam mesmo ao enredo o desfilar do cotidiano de cada um dos quatro personagens: Rodrigo Ferrarini, cínico, com sua dialética meticulosa e uma maiêutica ao inverso que fornece resposta a cada pergunta – ainda que a resposta, aparentemente lógica, lance-nos ao vazio. Rodrigo, na banda, toca pratos; é sempre aquele que está no compasso errado. Raniere Gonzales tem muitas tatuagens (sim, ator e personagem, estabelecendo um diálogo autoficcional); aparentemente tranquilo e observador, transforma-se radicalmente buscando sua identidade; é o cantor da banda. No espetáculo, a atuação de Raniere é excepcional, apresentando-nos um  ator versátil e de muitos recursos. Giovana Soar, moça solitária, dada às práticas politicamente corretas, que na realidade a oprimem. Emblemática a cena em que Giovana, ao chorar, é guarnecida de lenços de papel. Ela adora lenços de papel, embora saiba que deveria preferir os de pano, reutilizáveis. Seu humor é oscilante, e na banda toca o bumbo. Por fim, Nadja Naira, a silenciosa, com seu corpo alto e magro. Seu instrumento é a guitarra, que leva junto ao peito para esconder sua nudez. Nadja, quando vestida da guitarra, transforma-se em uma mulher mais autoconfiante. É o entrelaçamento destes quatro personagens (e fica a pergunta: até que ponto atores e personagens estão realmente separados?) que compõe a trama de “Vida”.
Difícil é estabelecer limites de gênero para o espetáculo, que oscila entre o drama e o humor. Multifacetado, autoficcional, intertextual, “Vida” apresenta muitos méritos, desde o cenário, de grandes proporções (o que realmente chama a atenção nestes tempos de uma dramaturgia minimalista), passando pela trilha sonora (assinada por André Abujamra), pelo texto primoroso e instigante e chegando à atuação excepcional de Raniere, que literalmente incorpora o personagem (ou seria o inverso). Entretanto, há talvez um certo excesso na montagem, uma repetição de situações, que ao final cansam a plateia. Fica a impressão que o espetáculo poderia alcançar seu desfecho um pouco antes, talvez no momento em que Raniere, neuroticamente, lança-se pela parede. A cena em questão é forte, definitiva, repleta de uma radicalidade que, inclusive, torna injustificado o retorno do personagem à cena.
Por fim, se Paulo Leminski ou Beckett, não importa. “Vida” fala por si! Diverte e incomoda. Espetáculo que enche os olhos mas, e ao mesmo tempo tem o mérito de deixar um quê da náusea sartreana. Tem o que dizer, e diz! Certamente, uma grande peça... porém longa!

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