Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza.
Viegas Fernandes da Costa
Momento da peça apresentada pelos alunos da UnB. Crédito da imagem: Daniel Zimmermann. |
Malva Rosa é flor, e de muitos
nomes, rosa louca, amor dos homens.
Malva Rosa pode ser Aurora, Mimo de Vênus, mas pode também ser uma
papoula de duas cores. Plantada sob o sol, em solo fértil, Malva Rosa não
suporta água em excesso. Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza.
Em uma alteração de protocolo, o
Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau, na edição do seu
jubileu, abriu as cortinas com uma peça da mostra universitária nacional. E acertou.
Trouxe ao palco do Teatro Carlos Gomes, em sua primeira noite, o grupo Casulo
Dramaturgia de Atores, da Universidade de Brasília, com o espetáculo “Malva
Rosa”, uma montagem do texto de Newton Moreno intitulado “Agreste (Malva Rosa)”.
E disse acertou porque os atores do Planalto Central comoveram e entusiasmaram,
como poucas vezes se viu nas edições mais recentes do FITUB, o público presente
na noite de quinta-feira.
O texto de Newton Moreno é
primoroso, rico de significados e possibilidades, e não de todo estranho à
plateia do Vale do Itajaí. Em 2010 o SESC trouxe a Blumenau e Brusque o
espetáculo “Agreste”, encenado pela Cia Razões Inversas, de São Paulo. À época
eram apenas dois atores revezando-se nos papeis, tendo como principal recurso o
próprio corpo. Agora, quase uma dezena de atores, acompanhados de músicos e cantores,
explorando as muitas possibilidades que uma montagem pode oferecer, para contar
uma história de amor e sofrimento, absolutamente linear, ou seja, com começo,
meio e fim – algo tão raro nas propostas contemporâneas.
Malva Rosa conta a história de
amor entre Etevaldo e sua companheira no interior do agreste brasileiro. Tímidos
como caramujos, tolhidos na ignorância e na crença de um Deus castigador,
demoram a ultrapassar os limites que lhes são impostos. Há uma cerca a lhes
separar os corpos, frágil e incerta, na qual um buraco que a cada dia aumenta
mais convida à passagem. Esta cerca, entretanto, é apenas a fronteira visível, tangível,
permissiva. Há outras fronteiras muito mais difíceis de reconhecimento, muito
mais opressoras, fronteiras inconcebíveis de se pensar, de se falar, de se
querer ver. Malva Rosa (ou Agreste), texto claramente inspirado no universo de
Guimarães Rosa, conta assim uma história de ignorância, revelação e expiação.
Contundente, discute e denuncia o autoritarismo e a cegueira da verdade sem,
entretanto, renunciar à necessidade do movimento. Porque há felicidade no
movimento, na migração, ainda que o preço seja alto, ainda que o preço seja a
própria vida. Para além, ainda que ambientada em um agreste atrasado, de uma
temporalidade quase estática e arcaica, “Malva Rosa” dialoga com temas
contemporâneos, como a homofobia, a promiscuidade do discurso religioso, os
desmandos de um coronelismo que ainda sobrevive em nosso cenário político, a
hipocrisia.
O que o grupo Casulo Dramaturgia
de Atores levou para o palco foi apuro técnico, sensibilidade, poesia, cuidado
estético e muita entrega. A peça iniciou com os atores saindo de redes suspensas
como quem sai de casulos. O cuidado com a coreografia, com a iluminação, com a
sonoplastia, o cenário austero (composto por redes e caixotes cuja posição os atores
modificavam com o transcorrer da peça, atendendo às necessidades da composição),
criou uma estética profundamente poética. A “fotografia” de “Malva Rosa” é
primorosa!
Técnica vocal, de canto, e muita
disciplina, foram a tônica da apresentação. Como se não bastasse, de um dos
camarotes laterais do teatro, músicos e cantores tocavam a trilha sonora da
montagem. Destaque especial para a cantora lírica, cuja voz preencheu cada
canto do grande auditório. Simplesmente comovente!
O espetáculo apresentado pelos
acadêmicos da Universidade de Brasília funcionou muito bem porque efetivamente estruturado
no coletivo. Difícil apontar algum ator ou atriz que tenha se destacado, e
alguns deslizes individuais de representação foram totalmente absorvidos nesta
coletividade. Méritos da direção, assinada por Alice Stefânia.
Ao final, quando o sentido de
Malva Rosa se revela, e a personagem se reconhece no momento derradeiro, quando
o fogo que purifica toma conta da vida e a luz revela a nudez que morava na
ignorância e na escuridão, temos um dos momentos mais bonitos de todo
espetáculo, plasticamente perfeito, e carregado de sentidos.
Ainda é cedo para qualquer
prognóstico, mas reunindo tantas qualidades, e a julgar pelo entusiasmo do
público, revelado na força dos aplausos, “Malva Rosa” é forte candidato ao
prêmio de melhor espetáculo desta edição do Festival Internacional de Teatro
Universitário de Blumenau.
Malva Rosa é flor, e de muitos nomes, rosa louca, amor dos homens. Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
Estava curiosa pra ler tua análise! Assino embaixo: Foi uma experiência profundamente tocante.
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