segunda-feira, 16 de julho de 2012

Videoclipe 25º FITUB


Videoclipe 25º FITUB: Direção Nassau de Souza - Produção Jozzy de Souza

Irmanamos na mesquinharia


Irmanamos na mesquinharia

Magali Moser*

Cena de "A saga do sertão da farinha podre"
Crédito da Imagem: Íria Pieritz
Há uma semana do ano que se torna melhor viver em Blumenau. Os dias frios do mês de julho chegam acompanhados de expectativa e efervescência cultural com o Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau. Durante o FITUB, a cidade ganha outro ritmo. As ruas, novo colorido, novas caras, novos sons. É o momento de reencontro de pessoas queridas. E também do inevitável contato com a diversidade do mundo. Nestes dias, o diferente se incorpora com naturalidade à paisagem monótona. Quando, além do mês de julho, haveria a possibilidade de encontrar com alguém de Israel pela cidade? Em que outro momento o Teatro Carlos Gomes celebra o papel que lhe cabe de forma tão singular? Quando a arte toma conta do espaço urbano com tanta intensidade?
O mais antigo festival universitário de teatro do País chega a 25ª edição consolidado no calendário cultural. No entanto, é lamentável admitir que um festival desta envergadura tenha sido reduzido em dois dias por conta de outros eventos agendados no teatro. Como lembra o historiador Viegas Fernandes da Costa, apesar da vida longa, surpreende-se também por ainda não contar com o apoio dos governos municipal e estadual.
O descaso com a cultura e a tentativa de manter a cidade sob as definições de “ordeira”, “de família” e com “pessoas de bem”, para usar as palavras da peça A Saga no Sertão da Farinha Podre, foram tratados de forma cômica e crítica no espetáculo apresentado no último sábado, 7, na praça em frente ao Teatro Carlos Gomes, pelo Coletivo Teatro da Margem, de Uberlândia (MG), que em 2010 trouxe para Blumenau o premiado “Canoeiros da Alma”.
Na primeira incursão pelo teatro de rua, a peça dirigida por Narciso Telles reflete sobre a expulsão de artistas que passavam em caravana pelo Sertão da Farinha Podre, com a apresentação do espetáculo Antígona de Sófocles. O grupo enfrenta as hipocrisias de uma cidade que quer manter um rótulo. Há uma tentativa de manter o padrão de “cidade ideal”. As coincidências do espetáculo com Blumenau não param por ai. O texto traz ainda referências à prática de racismo e abuso de autoridade cometido por policiais miliares durante o FITUB ano passado contra um estudante mineiro de teatro. Em outro momento, um dos personagens utiliza um quepe em alusão ao mito de que a parte superior do prédio do Teatro Carlos Gomes tenha sido construída em homenagem a Hitler.
As questões do espetáculo mineiro são próximas à realidade de qualquer cidade. Tanto que ficou a dúvida se foi produzido especialmente para Blumenau. Um dos integrantes do grupo, o ator Samuel Giacomelli esclarece: “na verdade falamos da história de Uberlândia. Claro que em cada cidade que vamos inserimos alguns elementos para ficarmos mais próximos da situação local, mas são muito sutis essas mudanças. Definitivamente, somos todos vizinhos dessas mesquinharias e intolerâncias.”
Se o FITUB deixa uma lição é justamente esta: somente a arte é capaz de nos libertar dessas mesquinharias. A arte tem o estranho poder de nos comover profundamente. Ela fala de nós, de nosso âmago. Permite um olhar sobre nós mesmos. É indispensável por gerar formas mais sensíveis de ver o mundo. A arte só liberta porque é universal, e aí o grupo israelense que apresentou Dona Flor e Seus Dois Maridos nos prova mais uma vez esta constatação ao levar para os palcos do teatro uma obra genuinamente brasileira. A coordenadora do FITUB, Pita Belli, tem razão. Como apontou na cerimônia de premiação do festival, ontem à noite: O FITUB é um patrimônio de todos nós. Que venha logo a próxima edição!

*Magali Moser é jornalista. Este artigo foi originalmente publicado no blog  http://jornalistamagalimoser.wordpress.com/ 

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Os premiados do 25 FITUB.


Espetáculo Baden Baden
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann

Espetáculo Destaque da Mostra Paschoal Carlos Magno: LA VIDA ES SUEÑO, da Compañia de Titiriteros de la UNSAM, Universidad Nacional de San Martin, Buenos Aires – Argentina


Figurino: Mirella Granucci, Luísa Bresolin e Alyce Assal, por BADENBADEN, da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis/SC.


Cenografia: Eloy Machado, por ESTUFA, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ.

Iluminação: Amauri Martins, por A VISITA DA VELHA SENHORA, da Universidade Estadual de Maringá/ UEM, Maringá/PR.

Concepção Sonora: Fábio Miranda por MALVA ROSA, da Universidade de Brasília/UnB, Brasília/DF.

Conjunto de Atores: Grupo BadenBaden, por BADENBADEN, da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis/SC.

Atriz: Sara Mello Neiva, como Karola, Dona Anne e Joana, em MARIE, da Marie Cia. de Teatro, da Universidade de São Paulo/USP, São Paulo/SP.

Ator: Lucas Dilan, como Platona Jhonys, em A SAGA NO SERTÃO DA FARINHA PODRE, da Universidade Federal de Uberlândia/UFU – Uberlândia/MG.

Direção: Vicente Concílio, por BADENBADEN, da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis/SC.

Melhor Espetáculo: BADENBADEN, da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis/SC.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Estufa

"Estufa"

Viegas Fernandes da Costa

Crédito da Imagem: Daniel Zimmermann
O sentido é a ausência de sentidos. Dadaístas já pensavam assim lá no primeiro quartel do século XX, e outros antes, e outros depois. Se na urbanidade monstruosa onde bilhões de vidas nascidas para desaparecer, esbarram-se na incomensurável solidão de multidão, há esta sensação de crescer sob os limites de uma liberdade controlada, sob um sol que se anuncia sobre um filtro, qual plantas que crescem sob estufas. Ainda assim, há a arte que se pretende anúncio daquilo que julga importante; a arte que se pretende ave, mas rasteja nos limites da técnica e da sacralidade teórica; o ator que se deixa manipular títere sob as mãos de um diretor/deus. Afinal, o que dizemos? Afinal, para que dizer? Afinal, o que representa a arte, o que significa o teatro?
O Coletivo Kerencaferem, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trouxe à 25ª. Edição do Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau o espetáculo “Estufa”, sob direção de Nina Balbi e texto do próprio coletivo. Encenado em espaço allternativo (uma sala de aula), “Estufa” construiu uma ação cênica que tinha como objetivo primeiro discutir o estilo de vida nas estruturas urbanas contemporâneas, mas que resultou principalmente em uma espécie de metateatro.
À plateia contorna um cenário que reproduz uma espécie de estufa. Folhas secas cobrem o chão, e plantas pendem do teto. A atmosfera é pesada. Um quadrado sombrio e úmido no qual se desenrola a não-trama. A um dos cantos, uma cadeira na qual um dos personagens (o ancião sábio protagonizado por um ator jovem que propositalmente não faz qualquer esforço para parecer idoso) passará sentado por toda peça. Qual sua função? Não há função.
Crédito da Imagem: Daniel Zimmermann 
Sobre o chão de folhas secas os demais personagens interminavelmente armam uma espécie de piquenique. A toalha, a louça, os talheres. Tudo deve estar exatamente no lugar. Também os próprios personagens/atores necessitam constantemente reafirmar, afinal, os papeis que supostamente representam, em uma espécie de trama dentro da não-trama. Toda esta ordem, entretanto, esbarra na imposição da desordem, porque esta impera, subterraneamente, e aflora na cena, destruída com violência. O primitivo se impõe, a dor em todos os sentidos protagoniza. Ainda se tenta apelar a uma pretensa razão, e uma voz onisciente (o diretor? Deus? os fatos sociais?) que se anuncia pelo telefone, orienta a ação para que esta funcione. Mas a ação não funciona, e qualquer tentativa de ordenamento esbarra no caos. O caos é tudo que passa a existir, interna e externamente.
“Estufa” apresentou uma ótima ambientação cênica e algumas interpretações convincentes, e se seu objetivo, enquanto proposta dramatúrgica, era provocar incômodo e angústia na plateia, conseguiu. Por outro lado, sua linguagem tornou-se por demais cansativa e hermética, distanciando o público e resultando em uma espécie de vazio. Talvez tenha sido justamente esta a intenção da diretora e do grupo; entretanto, cabe questionarmos qual o lugar de um espetáculo como “Estufa” na cena contemporânea. Se, por um lado, esforça-se por anunciar a modernidade absurda que construímos, por outro, esgota-se num experimentalismo já exaustivamente explorado.
Ao final restou a frustração com a própria peça, e a sensação de que o teatro morreu.

Texto completo de "La vida es sueño"

Na noite do dia 10 de julho, a Compañia de Titiriteros de La Universidad Nacional de San Martin, da Argentina, subiu ao palco do Teatro Carlos Gomes para apresentar a peça "La vida es sueño", uma adaptação do texto homônimo escrito pelo poeta e dramaturgo espanhol Pedro Calderón de la Barca em 1635.
O texto original possui três atos, e pertence à escola barroca. O espetáculo apresentado pelo grupo argentino nesta edição do FITUB foi livremente adaptado por Carlos Almeida, também diretor da peça.
No link abaixo você poderá ler a íntegra do texto original, do século XVII.

La vida es sueño, de Pedro Calderón de la Barca.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

25º FITUB - Peça Badenbaden, da UDESC.

Depoimento da atriz Nica Barros no FITUB de 2012

Depoimento da atriz Nica Barros, que atuou na peça "Clown Bar" (Universidade Federal da Paraíba).

Depoimento da estudante de teatro Cíntia Daniela Galz no FITUB de 2012

Depoimento da estudante de teatro Cíntia Daniela Galz no 25. FITUB.

Depoimento do Diretor de Teatro Carlos Almeida no FITUB de 2012

Depoimento de Carlos Almeida, Diretor da peça argentina "La vida es sueño"
 (Universidad Nacional San Martin)

Depoimento da atriz Angélica Amaral no FITUB de 2012

Depoimento de Angélica Amaral, atriz da peça "Clown Bar" (Universidade Federal da Paraíba)

Depoimento do ator Adriano Amaral no FITUB de 2012

Depoimento do ator Adriano Amaral no 25. FITUB.

Depoimento de Thiago Seifert sobre o FITUB

Assista ao depoimento do publicitário Thiago Seifert a respeito do 25. FITUB.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Depoimento de Irad Rubinstein


Assista ao depoimento de Irad Rubinstein, diretor da peça israelense "Dona Flor e seus dois maridos", à FURB TV e ao Sarau no Fitub.

A "Visita da velha senhora"

"Visita da velha senhora"

Viegas Fernandes da Costa

Crédito da imagem: Daniel Zimmermann
Na noite de domingo, sob a direção de Mateus Moscheta, o Grupo Teatro Universitário de Maringá (TUM), da Universidade Estadual de Maringá, subiu ao Palco do Grande Auditório Heinz Geyer para apresentar a peça “Visita da velha senhora”, escrita em 1956 pelo dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990). A montagem dos paranaenses participa da Mostra Universitária Nacional do 25º. Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau.
Sob forte influência de Bertold Brecht, do qual Dürrenmatt era discípulo, “Visita da velha senhora” constitui-se como uma “comédia trágica”, segundo definição de seu próprio autor, e conta a história da pequena cidade de Gullen, empobrecida e esquecida pelo resto do mundo. Sequer os trens param na estação de Gullen, e seus habitantes miseráveis sobrevivem da sopa distribuída pelo poder público. Certo dia, entretanto, para espanto de todos, desembarca na estação a senhora Clara Zahanassian, mulher muito rica e que no passado fora vítima de um julgamento injusto que a degredara de Gullen, fazendo com que sofresse as penas da vida. Retornara à cidade para comprar a justiça que não tivera no passado, e oferta a cada família do lugar uma verdadeira fortuna em dinheiro caso Alfredo Schill, seu antigo amante e o responsável por seus infortúnios, fosse morto. A proposta leva então os habitantes de Gullen da miséria material à miséria moral. Tendo vivenciado a Segunda Guerra Mundial, Dürrenmatt, diferentemente de Brecht, não acreditava na transformação social, e sua visão absolutamente pessimista a respeito da natureza humana pode ser claramente percebida neste texto encenado pelo TUM. “Visita da velha senhora” já recebeu infinitas montagens no Brasil e no exterior, bem como exerce grande influência na obra de diversos autores.            A título de exemplo destas influências podemos citar o romance “Tieta do Agreste” (1977), do escritor brasileiro Jorge Amado, e o filme Dogville (2003), dirigido pelo dinamarquês Lars Von Trier.
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann
O espetáculo apresentado pelo grupo do Paraná manteve-se bastante fiel ao texto original. Com um cenário austero, a peça destacou-se principalmente pelo figurino e pela movimentação dos atores, que modificavam os elementos cênicos a fim de criar as ambientações sugeridas pela narrativa. Por outro lado, o excesso de nervosismo fez com que diversos atores se atrapalhassem nas falas, o que acabou prejudicando a apresentação. Também a iluminação nem sempre esteve adequada. Ainda assim, os aspectos positivos da peça, sustentada pelo texto brilhante de Dürrenmatt, tornou possível uma boa percepção do espetáculo por parte do público. Vale destacar ainda algumas soluções dramatúrgicas encontradas pela direção para representar determinadas cenas, como a do início do espetáculo, quando da passagem do trem por Gullen. A solução encontrada pelo diretor para representar a composição férrea foi capaz de criar uma estética profundamente poética.
Mesclando humor negro e drama, “Visita da velha senhora”, apresentada pelo Grupo Teatro Universitário de Maringá, apesar de não entusiasmar, conseguiu comunicar o espírito do texto de Friedrich Dürrenmatt, levando o público ao incômodo do reconhecimento com uma natureza humana vil, hipócrita e egoísta. 
A última ceia, na visão de Mateus Moscheta
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann

Vídeo de "A Visita da Velha Senhora"

Vídeo com trechos da peça "A visita da velha senhora", apresentada pelo grupo Teatro Universitário de Maringá, da Universidade Estadual de Maringá, no FITUB

domingo, 8 de julho de 2012

“Dona Flor e seus dois maridos”

"Dona Flor e seus dois maridos"

Viegas Fernandes da Costa

Crédito da imagem: Daniel Zimmermann
“Dona Flor e seus dois maridos” subiu ao palco do Grande Auditório Heinz Geyer como uma das peças mais aguardadas deste 25º FITUB. Adaptada do romance homônimo de Jorge Amado por Yoav Szutan e Irad Rubinstein, foi encenada pelos alunos da Yoram Loewenstein Acting School, de Tel Aviv. Dirigida por Irad Rubinstein, despertou curiosidade justamente por se tratar de uma montagem israelense de um texto tão marcadamente baiano, bem como pelo espanto do público ao saber que o mesmo seria falado em iídiche. Com tantos elementos exóticos somando-se ao realismo fantástico e à sensualidade do triângulo amoroso criado por Jorge Amado, não foi difícil prever a casa lotada na noite de sábado, o que efetivamente aconteceu. Um público curioso e entusiasmado acorreu ao Teatro Carlos Gomes para aplaudir, de pé, a despeito das dificuldades de compreender o idioma dos atores e os problemas técnicos com as legendas, uma montagem primorosa e bastante fiel ao texto original.
Publicado originalmente em 1966, “Dona Flor e seus dois maridos” conta a história do romance entre Flor e Vadinho, este um vagabundo mulherengo que vivia metido em cassinos e prostíbulos. Apesar de traída e explorada por Vadinho, Flor amava seu marido, amante intenso que sempre foi. Depois que este morreu subitamente em pleno carnaval de Salvador, Flor envolve-se com um farmacêutico casto e tímido, incapaz de satisfazê-la sexualmente. Frustrada, inconscientemente chama por Vadinho, que imediatamente acorre do além para atender aos apelos da esposa, provocando uma série de confusões e criando uma espécie de triângulo amoroso. A Montagem dirigida por Rubinstein mantém a estrutura original do romance, bem como sua fábula e seus principais personagens, e parece ter sofrido influência direta do filme homônimo de 1976, dirigido por Bruno Barreto. Leva para o palco os principais elementos identitários da cultura baiana, tão caros a Jorge Amado. O candomblé, a culinária, o carnaval de rua, o erotismo, bem como a hipocrisia oportunista das elites baianas, estão perfeitamente retratadas na peça israelense. Vale destacar ainda a deferência com que o grupo israelense se relacionou com o texto brasileiro, considerado por eles um clássico de nossa literatura.
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann
Cientes das dificuldades que o idioma poderia representar para uma plateia brasileira, e preocupados em estabelecer uma empatia direta com o público, algumas palavras e trechos da peça eram falados em português, principalmente aquelas capazes de despertar um reconhecimento pátrio. Não por acaso, a palavra Bahia bailava exaustivamente na boca dos atores, nativos de um país no qual o sincretismo cultural não é tão intenso quanto no Brasil, o que soava um pouco estranho. Afinal, esperava-se que a simples menção ao estado nordestino pudesse despertar na plateia do FITUB uma simpatia identitária, o que obviamente não aconteceu. A parte isto, os atores conseguiram envolver o público, despertar o riso e tornar o espetáculo perfeitamente inteligível e rico.
“Dona Flor e seus dois maridos” trouxe ao palco os ritmos de Salvador, mesclando muito bem o profano e o sagrado. Terreiro, puteiro, cassino e cozinha tomavam a cena sem que houvesse a necessidade de um cenário propriamente dito (salvo a existência de uma pequena mesa com ingredientes da culinária de Salvador, ao canto esquerdo do palco, não há outros elementos cenográficos no espetáculo). A dramaturgia aconteceu principalmente na interpretação dos atores, nos ritmos da percussão capazes de nos devolver ao estado sagrado do primitivo, na iluminação e no figurino – este um espetáculo à parte. Muito interessantes e criativas, também, as soluções encontradas pela direção para responder às necessidades da narrativa. A roleta do cassino, por exemplo, que tanto seduzia Vadinho e o levava à perdição, surgia no palco representada por uma excitante mulher rodando pornograficamente sua saia de cores alternadas (o rubro e o negro), e que engolia, ao final, as fichas do incauto jogador.
Repleto de humor e sensualidade, apresentando soluções dramatúrgicas de grande criatividade, e com atores entregues aos tipos que representavam, “Dona Flor e seus dois maridos”, sob a direção de Irad Rubinstein, surpreendeu, divertiu e mostrou a universalidade de que é capaz a obra de Jorge Amado. 
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann

sábado, 7 de julho de 2012

Clown Bar

Clown Bar

Viegas Fernandes da Costa

Sob a direção de José Tonezzi, o Núcleo de Experimentações e Estudos do Cômico (NEECO) da Universidade Federal da Paraíba subiu ao palco do Pequeno Auditório Willy Sievert no segundo dia do FITUB para apresentar ao público a peça “Clown Bar”, um conjunto de esquetes cômicos que não possuem relação entre si, salvo o fato de estarem ambientados em um bar.
O cenário é muito simples, apenas uma mesa coberta por uma toalha e ocupada por uma garrafa de bebida que levava no rótulo o símbolo de algo venenoso. Neste bar cinco atores clowns revezam-se nas cenas cômicas e representam diversos tipos: a balconista ordinária, o bêbado esfarrapado, o playboy, o banhista afetado e esnobe, o pintor ridiculamente travestido à moda clássica e o monge anão com pés de pato (personagem encantador e destaque da peça). As cenas apresentam uma série de gags clássicas, e algumas propõem uma reflexão sobre o fetiche de produtos culturais propalados pela mídia e consumidos pelo público numa lógica de “fast-food” descartável. Neste sentido, a montagem do grupo da Paraíba mantém-se contemporânea. Ao fazer uso de clichês e gags clássicas, desperta o riso, mas também nos leva a questionamentos do tipo: afinal, o que faz tantos e tantos de nós a “curtir”, por exemplo, uma “dança da motinha”?
Se, por um lado, “Clown Bar” tinha como principal propósito divertir e provocar gargalhadas no público, atingiu seu objetivo. Por outro, não apresentou novidades, e muitas cenas tornaram-se excessivamente longas e cansativas. Flertando com a malícia e o absurdo, e justamente por apresentar um universo cômico capaz de ser reconhecido pelo público, despertou empatia da plateia, mas também fez com que os números se tornassem por demais previsíveis. Presos aos tipos, os atores acabaram por reproduzir estereótipos clássicos sem demonstrar grandes recursos de interpretação. Exceção feita ao personagem final da peça, um monge anão e corcunda, com pés de pato e braços cortados, figura grotesca elevada à graciosidade pela qualidade de interpretação de seu ator.
“Clown Bar”, uma peça divertida, mas que podia ter mostrado mais.

Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza


Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza.

Viegas Fernandes da Costa

Momento da peça apresentada pelos alunos da UnB.
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann.
Malva Rosa é flor, e de muitos nomes, rosa louca, amor dos homens.  Malva Rosa pode ser Aurora, Mimo de Vênus, mas pode também ser uma papoula de duas cores. Plantada sob o sol, em solo fértil, Malva Rosa não suporta água em excesso. Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza.
Em uma alteração de protocolo, o Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau, na edição do seu jubileu, abriu as cortinas com uma peça da mostra universitária nacional. E acertou. Trouxe ao palco do Teatro Carlos Gomes, em sua primeira noite, o grupo Casulo Dramaturgia de Atores, da Universidade de Brasília, com o espetáculo “Malva Rosa”, uma montagem do texto de Newton Moreno intitulado “Agreste (Malva Rosa)”. E disse acertou porque os atores do Planalto Central comoveram e entusiasmaram, como poucas vezes se viu nas edições mais recentes do FITUB, o público presente na noite de quinta-feira.
O texto de Newton Moreno é primoroso, rico de significados e possibilidades, e não de todo estranho à plateia do Vale do Itajaí. Em 2010 o SESC trouxe a Blumenau e Brusque o espetáculo “Agreste”, encenado pela Cia Razões Inversas, de São Paulo. À época eram apenas dois atores revezando-se nos papeis, tendo como principal recurso o próprio corpo. Agora, quase uma dezena de atores, acompanhados de músicos e cantores, explorando as muitas possibilidades que uma montagem pode oferecer, para contar uma história de amor e sofrimento, absolutamente linear, ou seja, com começo, meio e fim – algo tão raro nas propostas contemporâneas.
Malva Rosa conta a história de amor entre Etevaldo e sua companheira no interior do agreste brasileiro. Tímidos como caramujos, tolhidos na ignorância e na crença de um Deus castigador, demoram a ultrapassar os limites que lhes são impostos. Há uma cerca a lhes separar os corpos, frágil e incerta, na qual um buraco que a cada dia aumenta mais convida à passagem. Esta cerca, entretanto, é apenas a fronteira visível, tangível, permissiva. Há outras fronteiras muito mais difíceis de reconhecimento, muito mais opressoras, fronteiras inconcebíveis de se pensar, de se falar, de se querer ver. Malva Rosa (ou Agreste), texto claramente inspirado no universo de Guimarães Rosa, conta assim uma história de ignorância, revelação e expiação. Contundente, discute e denuncia o autoritarismo e a cegueira da verdade sem, entretanto, renunciar à necessidade do movimento. Porque há felicidade no movimento, na migração, ainda que o preço seja alto, ainda que o preço seja a própria vida. Para além, ainda que ambientada em um agreste atrasado, de uma temporalidade quase estática e arcaica, “Malva Rosa” dialoga com temas contemporâneos, como a homofobia, a promiscuidade do discurso religioso, os desmandos de um coronelismo que ainda sobrevive em nosso cenário político, a hipocrisia.
O que o grupo Casulo Dramaturgia de Atores levou para o palco foi apuro técnico, sensibilidade, poesia, cuidado estético e muita entrega. A peça iniciou com os atores saindo de redes suspensas como quem sai de casulos. O cuidado com a coreografia, com a iluminação, com a sonoplastia, o cenário austero (composto por redes e caixotes cuja posição os atores modificavam com o transcorrer da peça, atendendo às necessidades da composição), criou uma estética profundamente poética. A “fotografia” de “Malva Rosa” é primorosa!
Técnica vocal, de canto, e muita disciplina, foram a tônica da apresentação. Como se não bastasse, de um dos camarotes laterais do teatro, músicos e cantores tocavam a trilha sonora da montagem. Destaque especial para a cantora lírica, cuja voz preencheu cada canto do grande auditório. Simplesmente comovente!
O espetáculo apresentado pelos acadêmicos da Universidade de Brasília funcionou muito bem porque efetivamente estruturado no coletivo. Difícil apontar algum ator ou atriz que tenha se destacado, e alguns deslizes individuais de representação foram totalmente absorvidos nesta coletividade. Méritos da direção, assinada por Alice Stefânia.
Ao final, quando o sentido de Malva Rosa se revela, e a personagem se reconhece no momento derradeiro, quando o fogo que purifica toma conta da vida e a luz revela a nudez que morava na ignorância e na escuridão, temos um dos momentos mais bonitos de todo espetáculo, plasticamente perfeito, e carregado de sentidos.
Ainda é cedo para qualquer prognóstico, mas reunindo tantas qualidades, e a julgar pelo entusiasmo do público, revelado na força dos aplausos, “Malva Rosa” é forte candidato ao prêmio de melhor espetáculo desta edição do Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau.
Malva Rosa é flor, e de muitos nomes, rosa louca, amor dos homens. 
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Agreste (Malva-Rosa)


O Sarau no Fitub publica o texto "Agreste (Malva-Rosa)", de autoria de Newton Moreno. Sob o título "Malva Rosa", este texto foi montado pelo grupo Casulo Dramaturgia de Atores, da Universidade de Brasília, e abriu o 25. FITUB.

Cena do espetáculo Malva Rosa, apresentado pelo grupo Casulo Dramaturgia de Atores (UnB) na abertura  do FITUB de 2012. (Crédito da imagem: Daniel Zimmermann)


Agreste (Malva-Rosa)

Newton Moreno

A idéia deste texto é servir como exercício de narrativa para um ator-contador(atriz).O narrador pode assumir todas as outras personagens, viúva, o padre, o delegado,ou as vozes dos moradores. Ou dispor de outro(s) ator(es) que cria(m) uma partitura física para determinados momentos da estória. Da união destas duas linguagens – a oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento – será feito o espetáculo.

Um(a) narrador(a).

Velho(a) contador(a) de estórias. Daqueles que reúnem um grupo ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona, pontua suas histórias com as músicas e acordes que saem de seu instrumento. Ele(a) recebe o público, dá o clima de cada passagem do texto, pausas, enfim, é o grande condutor da cena.

CONTADOR(A)
Ele andava muito para encontrá-la. Mas quando se viam, ficavam, no mínimo, a cinco metros de distância. Nem um centímetro a mais ou a menos. Exatos cinco metros. Sempre. Uma cerca os separava. 
Ela sorria de um lado, ele, do outro.
Ele deixava uma flor na cerca, ela ia buscar.
Ela deixava seu perfume na cerca, ele ia buscar.

Eram tímidos como caramujo. Precaviam-se. Se chegassem muito perto, Deus sabe o que aconteceria. Tinha alguma coisa no amor deles que não devia acontecer. Mas aconteceu.

Por meses, anos. Eles e a cerca.

Ele deixava um beijo na madeira do cercado, ela colhia.

Foram se estreitando. Chocando sua intimidade.
Confiavam um no outro, que nem a terra na chuva.

Ele deixava sangue no arame da cerca, ela ia enxugá-lo.
Às vezes, podia demorar um mês para se encontrar. Ela deixava um pedaço de chita do vestido, ele amarrava na enxada. Era lavrador no Nordeste do país. Reino de areia e de sede. Era honesto. Forte. De pele marcada. Não dá para saber a idade. Eram como rochas velhas secando na espera. Sua cultura era o sol. Sua família era o sol.

Ele deixava cuia. Ela colocava cuscuz. Ele comia, sorrindo. Ele devolvia a cuia e ela ia buscar e... descobriram um furo na cerca!!!

MÚSICA
Os atores que representam o casal estudam o buraco, cada um do seu lado. Tempo.

CONTADOR(A)
Incertos. Fingiram não vê-lo. Era um buraco enorme como o sertão. Fingiram por uma semana. Duas. Um mês. A dúvida.
Mas o buraco crescia, como querendo se exibir. Amostrado. A cada vez que voltavam, estava maior.
E eles de butuca no furo. Parecia um açude, tentando-os com sua água escura, escura, cor de enigma.
Se ele tocasse nela? Se ela aceitasse ele?
Às vez, é preciso muita coragem para dar um passo.

TEMPO. Ação dos atores estudando o buraco.

CONTADOR(A)
Naquela manhã, ela foi sozinha. Firmou-se frente ao buraco. Tomou coragem e cruzou. acalmou-se aos poucos. Respirou, deu um passo, dois. Parecia um astronauta movimentando-se pela primeira vez na Lua. O ar é o mesmo. O Sol é o mesmo. O coração era outro. Uma criança brincando onde não devia. Trelosa. O que ela não sabia, era que ele estava lá. Olhando-a boquiaberto detrás do arbusto. Ela dançava, grunhia, sujava-se de terra.

Ele sorria.

Quando se perceberam, paralisaram. Mas muito, muito tempo. Ele ultrapassou o limite dos 5 metros, aos poucos. Alcançou o hálito nervoso dela. Talvez 45 centímetros. Atravessaram!

MÚSICA. Poeira subindo.

CONTADOR(A)
Correram. De tanta euforia e medo. Levantando uma nuvem de poeira por onde passavam. Uma nuvem como há muito o Nordeste não via.

Fugiram para longe.

Pensaram: chegariam no mar de tanto passo.

Chegariam, se tivessem corrido esse tanto de chão pro outro lado.
Avexaram-se no passo com medo de mudar de idéia. O medo deu pressa. As lágrimas d$ela tentavam marcar no chão um caminho de volta. Num determinado ponto, deram-se as mãos e tranquilizaram-se.
Perfuraram o Brasil mais fundo. Desmontaram dos pés no meio da seca. E pensaram que não devia existir um lugar mais árido que aquele. Mas o Nordeste surpreende a gente. Vai ter sempre uma rês mais murcha e um filho mais moribundo. O peito arfava de contentamento e pavor. Era como se inspirassem alegria e expirassem receio. Uma pausa de um silêncio pesado.
Desviavam olhares, cabisbaixos. Não queriam mostrar a dúvida passeando dentro dos seus olhos. Pior: não queriam ver nos olhos do outro a dúvida.
Voltar? Mesmo se quisessem, não saberiam como. As pegadas úmidas já nem existiam; foram sorvidas com força por aquela terra saudosa da água.
Deitaram os corpos na sombra de um mandacaru. Na margem do que fora um riacho. O sol já lhes roubara o senso, o tino.
Algo morno crescia na alma. Era um vapor no forno, no berço, na fôrma do novo afeto. Estavam à beira de um desmaio. A razão já se afogava com o sol a pino quando uma mulher se desenhava ao longe feito miragem. Veio lenta, feito a justiça. Aproximou-se.
Falava com eles, mas eles não ouviam uma só palavra. Em lugar das palavras, só conseguiam escutar os sons das águas. Da sua boca tudo soava gotas de chuva, barreiros cheios, açude vazando, água da calha. Os sons dela eram todos molhados. Ela falava como um rio, aquosa.
Foi essa mulher quem os salvou.
Levou ao povoado e tratou de acomodá-los.
Apearam neste arraial. Um pouco de jabá, sombra e água barrenta e recobraram o prumo.
Lá, eles plantaram a vida.

Música pára. O texto segue com a poeira ainda alta.

Construíram um casebre.
Cercaram com arame, mas para se prender por dentro.
Não queriam conhecer os outros, antes de Saberem de si.

Até então, nada das coisas que se permitem marido e mulher. A carne é um compromisso mais definitivo. Passou esta cerca, o gado é marcado.

E a noite chegou mais clara que o dia. E os olhos não se prendiam num abraço de jeito maneira. Mas os dois foram se descobrindo aos poucos.
Ela começou pelo seu rosto. Os cabelos dele. Escuros, cabeleira cabocla de filho de índio brabo. Farto e espesso. Devia de pesar na mão. Devia de quebrar pente fraco.
Ele fazia o percurso inverso. Pôs os olho nos cambito da moça. Umas canela fina, mas bronzeada, que lhe agradaram os sentido.
E assim se seguiu a malevolente investigação: ela descendo os olhos, ele subindo a vista.
Ela admirava era a dentição dele. Perfeitinha. Os dentes que faltavam em cima, ele tinha embaixo; e vice-versa. De modo que quando ele sorria, os dentes se encaixavam num sorriso de um fileira só, mas sem buraco. Mas sorria bonito ele!
Uma semana depois, eles se tocaram. Antes disso, só as mãos no meio da correria.
Ouvia-se uma pele rachando na outra, acostumando-se um ao outro, deixando o tempo passar. Um dia, ela se escondeu embaixo do lençol; ele apagou o candeeiro. Por anos, este foi o sinal, o código. Sumir-se embaixo do lençol. Cobrir a luz com o escuro. E ele apagou muito aquele pavio.
Como marido e mulher, viveram por vinte e dois anos.
Até hoje.

Música cessa. Poeira baixa. Homem deitado, mulher a seu lado.

Velhinhas entoam incelenças.

CONTADOR(A)
Morto, ainda vestido para o trabalho, ele dormia sob a mesa da sala. Uns candeeiros velavam o corpo, resguardando sua imagem.
As vizinhas foram adentrando. Vinham fazer quarto pro morto. Já cantavam em suas casas e traziam seus cantos no suspiro da noite. Todas empregavam as melhores palavras de um parco vocabulário para defini-lo.

VOZES
“Da mais alta estima”, “Pareia de Anjo”, “Elegante como Jesus”, “Íntegro como uma rocha”.

CONTADOR(A)
Era o mais elaborado do seu idioma. O resto era oração e cântico.

Uma vizinha sentenciou triste:

VE1
Ele desapareceu a ela.

CONTADOR(A)
Eram um casal benquisto. Discreto. Pouco festivos. Trabalhadores. Sem filhos. Nem seus nomes eram conhecidos. Seu Zé, Dona Maria, chamavam eles. (Pausa)
Quieta. A noite parecia uma pergunta difícil. Armava um bote/arataca.

(Pausa)

A sala povoou de mosquito e de mulher. Nunca tão farta. Nem de um, nem de outro.
Os homens explodiam seus sentimentos em rojões. Segredavam às estrelas saudades e estima.
Desenhavam lágrimas de luz no céu.
O padre estava a caminho para a extrema-unção. Amuada e com fome, a viúva remendava o terno puído para o enterro. O que deveria vesti-lo no casamento. Alguém lhe trouxe um pedaço de cuscuz com leite. Estacionou agulha e linha e comeu. Construiu uma figura triste. Do nada, irrompeu numa careta grotesca e chorou. É muito triste uma mulher comendo e chorando. Ainda mais viúva. Comeu até a última gota. Levantou-se e caminhou até Jesus. Beijou o quadro na altura do coração. A vela apagou-se, só se via a luz no coração de Cristo. Deus!! Jogaria terra sob o morto. Murmurando, pedia força para fazê-lo.
Um cortejo entornou na cama o corpo. Cabisbaixos, retiraram-se. O silêncio. Um silêncio que esfriava o sangue e que parecia nunca mais ir embora.

VE1
Quer vesti-lo, fia?

VE2
Ou quer que nóis ajude?

VIÚVA
Não. Pode trocá.

CONTADOR(A)
Um minuto depois, deixou escapar...

VIÚVA
Nunca que vi Etevaldo nu.

CONTADOR(A)
Revelou. Como se nem ela mesma quisesse ouvir aquela confissão.

VIÚVA
Fechava os olhos quando ele me machucava.

CONTADOR(A)
À noite. No breu. Através do lençol. Desconhecia aquele corpo, mas amava-o. Confessou, roxa de vergonha. E era a primeira vez que ela falava com alguém mais que duas sentenças.

VIÚVA
Se for pra eu trocá, vou ter que apagar o candeeiro. Aí vai dar uma trabalheira da gota serena.

CONTADOR(A)
Pediu que ficassem. Virou de costas e instrumentalizou-as com o terno. Recolhida. Como se houvesse alguma indecência em ver o marido nu. As velhinhas vestideira começaram a descascá-lo com técnica e indisfarçável contentamento.

VE2
Quanta virtude, meu amor.

VE1
Mas quem viu já conhece...

VE2
...Quem nunca viu não sabe o que é.

VE 1 e 2
“Veste esta mortalha
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô vestir
Foi a mãe de Deus.

Amarre este cordão
Quem mandô foi Deus;
Quem mandou marrá
Foi a mãe de Deus

Calça essa meia
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô vestir
Foi a mãe de Deus

Calça esse sapato
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô calçá
Foi a mãe de Deus

Bota no caixão (ou rede)
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô Botá...

VE1 (interrompendo o canto)
Oxente, cadê?.

CONTADOR(A)
A viúva já tinha entregue o paletó.

VE1
Maria de Deus, cadê a trouxa?

CONTADOR(A)
Assustou-se a velha.

VE!
Faz tempo que eu num vejo um, mas isso aqui não é peru.

VE2
Não se avexe não. Espie melhor. Procure direito.

CONTADOR(A)
De costas, a viúva se perguntava ...

VIÚVA
Que trouxa?

VE2
Deve de tá escondido. Às vez tem que ajudar pro bichinho florescer.

VE1
Mulé, ou eu perdi a vista de vez ou a piroca dele é do tamanho de um cabelo de sapo.

VE2
Deixe eu lhe ajudar ...

VE1
Menina, cadê a bilola?

VE2
...a bilunga?

VE1
...a bimba?

VE2
....o ganso?

VE1
....a macaca?

VE2
....a peia?

VE1
...o maranhão?

VE1
...a manjuba?

VE2
....a macaxeira?

VE1
....a pomba?

VE2
....o pororó?

VE1
o quiri? Olhe ali.

VE2
Não, não tá.

VE1
Creio em Deus Pai todo Poderoso..

VE2
Olhe a teta.

VE1
Menino, isso parece uma quirica

VE2
Creio em Deus Pai, mulher. É um tabaco.

VE1
É mulher. É mulher.

CONTADOR(A)
Disse e saíram correndo casa afora.

AS VELHAS
O marido dela é fêmea!!

VIÚVA
Posso me virar?

CONTADOR(A)
Súbito, uma multidão fez fila na porta do quarto. Uma mulher despida sob a cama e outra de costas olhando o retrato de Jesus.
A viúva não entendia nada. Não entendia a morte. Não entendia homem. Naquele momento, só entendia a perda. Incrédulos, alguns faziam o sinal da cruz, outros se penduravam na janela para procurar atentos pelo peru. Já havia quem tomasse partido dela.

VOZ1
“Foi enganada a coitadinha. A sem-vergonha iludiu a bichinha.”

CONTADOR(A)
Outros mais radicais:

VOZ2
“Elas vieram foi fugida para sujar nosso lugar com essa mundiça.”

CONTADOR(A)
Facções se formavam e a notícia galopava. Nisso, o padre chegou e foi direto cobrir o defunto, ou melhor, a defunta. Expulsou a todos. Trancou-se mais ela. Ressuscitou um candeeiro. Tomou coragem várias vezes para falar algo. Ponderado, começou:

PADRE
Minha filha, você dormiu com uma mulher.

VIÚVA
Não, seu padre, eu dormi com Etevaldo. E nunca que gostei. Sabia que num devia.


PADRE
Creio em Deus Pai.

VIÚVA
É por isso que o senhor tá brabo?

PADRE
Não.

VIÚVA
Dormimo junto porque ele gostava. Mas ele me jurou casamento. Se o senhor quiser, eu me caso com ele morto mesmo. O vestido tá aqui guardado.

PADRE
Não é ele, mocinha. É ela.

VIÚVA
É Etevaldo! Benza ele, benza.

PADRE
Nunca!

VIÚVA
Benza, padre, ele é devoto de Santo Antônio. Temente a Deus. Queria até casar na Igreja.

PADRE
Vou rezar por você.

VIÚVA
Por mim, não, padre. Reze por ele. Ajude ele a morrer.

PADRE
Não posso. Morreu em pecado escuro.

VIÚVA
Dê descanso a sua alma.

PADRE
Tenho que chamar o bispo na capital.

VIÚVA
Abençoe o sono dele.

PADRE
Não posso! Todo mundo sabe que eu a vi sem roupa.

VIÚVA (chorando e corrigindo)
Etevaldo...

PADRE
Etevaldo. Eles sabem que eu sei que ele é mulé. Pelo menos se tivesse me chamado antes, nós teríamos feito de outro jeito. Ninguém tomaria conhecimento, minha filha. Já enterrei gente que nem você e ela... Etevaldo. Gente que morreu fazendo menos barulho.
(Pausa) Você o ama?

VIÚVA
Num sei o que é isso não. Eu queria ir mais ele.

PADRE
Que Deus lhe abençoe. (Abre a porta aos gritos)
Herege! Herege!!

CONTADOR(A)
Estatelada no chão, viu o padre sair da casa. Levantou-se a custo. A casa estava vazia agora. Escura. Agarrou-se ao candeeiro. Cobriu seu marido. Sem investigar-lhe a nudez. Incomodou-a estar só. Queria cantar para ouvir alguém. Não sabia se Jesus estava com ela ou não. Tinha Deus como uma certeza, mas às vezes achava que Deus podia aparecer, tomar um café, enrolar um fumo. Ficar mais íntimo. Gritos rodeavam a casa.

VOZES
“Belzebu!”.

CONTADOR(A)
O delegado apeou na porta dela.

VOZES
“Filhas do Demo!”

CONTADOR (A)
Disparou uns três tiros pro alto para tanger o gado revolto.

VOZES
“Mulesta da peste!”

CONTADOR (A)
Mugiram contrafeitos, mas desmilinguiram-se para dentro das moitas. Entrou chutando a porta. Arrastava-se e trazia uma nuvem de muriçoca/mosquito em torno do seu cheiro. Sentou-se de frente para a viúva. Nem olhou o defunto.

DELEGADO
A senhora provocou uma desordem arretada nos arredores. Sabe quem eu sou? Num me conhece, não? Pois eu sou o delegado. Vim a mando do Coronel Heráclito, conhece? Conhece, sim.
Trabalhou nas terra dele. Foi ele quem lhe deu sustento.
Disseram que a senhora nunca que pegou bucho.
Uns até desconfiavam, mas acharam que a gala de seu marido era rala. Coronel num gostou de saber de sua historinha, não.
Mandou vim ver de perto essa semvergonhice. A senhora deve de saber que amanhã findando o enterro, a senhora vai presa. Isso quer dizer depois que a senhora arranjar um lugar para enterrar seu macho.

(ri ).

Ele mandou dizer que nas terra dele não se enterra. Vocês são que nem as quenga, as rapariga,
as catráias, as sapuringa, que são tudo enterrada longe, no eito, nas brenha esquecida.
Nas terra dele só esterco bom. E vocês fedem a adubo estragado.
Vai ter que arranjar outro chão para enfiar esse corpo. Se enterro nesta terra, erva daninha nasce.

(olhando o caixão)

Menino, não é que ele é mulher mesmo? Mas é feio feito um macho. E tu ainda tratou bem dessa mulé. Tá gorda que nem filho de ladrão quando o pai tá solto. E tu num sabia que coronel num gosta dessa esfregação de fêmea com fêmea. Sua saboeira safada. Amanhã, na cadeia, a senhora vai conhecer macho para nunca mais se confundir.
E para gente num se confundir, para todo mundo saber qual é a tua raça, coronel quer lhe marcar a cara, como deve se ser feito com todas as vacas do rebanho. (Sai o delegado)

CONTADOR(A)
Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um penico. Um escarro. Uma doença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja, imunda. E não entendia porque. Não tinha cabeça para entendimentos.
Se pudesse falaria no ouvido de Deus. Cantou sua fé com devoção sincera, o que dá no mesmo. Olhe, Música e Deus ninguém vê.
Fé ninguém toca, nem se mede. Mas juro: acontecia livre cada centímetro de Jesus, na voz dela.
Tempo de seu canto. Cena parada. Contador a acompanha com instrumento.

CONTADOR(A)
Lembrou da dor e do alívio. A única imagem era a da mãe. Que fechava feridas com um sopro e ervas. Lembrou quando sangrou de chico da primeira vez. Ela gritava: “Mãe, tô vazando sangue”. E a mãe dizia: “É assim mesmo, fia. Crescer dói, de vez em quando”. Era a imagem de ninho que precisava para dar-lhe forças. E parecia ter o rosto da mãe desenhado na parede interna da pálpebra. Sua mãe cuidando da prole. Morrendo de fome, mas alimentando a cria. Sabia que ela cortaria uma mão se lhes faltasse carne pra comer. Amor? o que seria isso? Dor  alívio? Quando dava de chover, sua mãe punha os filhos tudo na chuva para aguar. Para crescer rápido. E só saíam de lá quando a chuva minguasse.
Queria estar com a mãe, queria ter ido no lugar dela quando morreu. Assim como trocaria de lugar com Etevaldo agora.

(Pausa)

Foi só delegado sair latindo pelo caatinga, e os gritos voltaram. Um grupo velou a madrugada inteira com impropérios, xingamentos, escárnios, maldições, pragas. Criaram um ódio.
Desenterraram a pior parte deles.
Desenterraram as piores palavras da língua.
Nem bem a madrugada se punha, trancaram portas e janelas da casa delas. Envergonhavam-se delas. Queriam apagá-las de suas memórias. Cercaram a casa. Enterravam-nas vivas.
Não se sabe quem foi, quantos eram. Nem quem acendeu o primeiro fósforo. Começaram
a incendiar o casebre.
Mal sabiam que, dentro, a viúva agradecia a benção de morrer com Etevaldo.
Temia muito mais viver sem ele, por certo. Tinha cantado bonito, Deus tinha lhe ouvido afinal. O fogo já empenava as paredes. Mesmo assim, a viúva acendeu o candeeiro. Viu-se por inteiro pela primeira vez. Descobriu então o que era mulher. Pôs-se ao lado de Etevaldo. Beijou-o. Na boca. O que nunca tinha feito. Abriu-lhe os olhos no meio do beijo, enquanto o fogo ganhava a casa inteira.

(Pausa)

O dia amanhecia e as fagulhas resistiram queimando por dias. Cinzas. Silêncio. As fagulhas, em suspenso, como um eco, pairavam, sobre lavouras, varais e gerações.

FIM

APÊNDICE

CONTADOR

“Uma lavadeira,
um beija-fulô.
Lavava os paninhos
De Nosso Sinhô.
Quanto mais lavava
Mais sangue corria,
Nossa senhora chorava
E o judeu sorria...”

Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.

Texto originalmente publicado na revista Sala Preta, v. 4, n. 1 (2004). O pdf pode ser lido em http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/75 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Mudança súbita na história de dois personagens abre o 25º Fitub

Mudança súbita na história de dois personagens abre o 25º Fitub

Depois de 22 anos juntos, tudo pode mudar para um homem e uma mulher bem esquisitos. Esta é a trama de Malva Rosa, que abre oficialmente nesta quinta-feira (5/7), a partir das 20h30min, o 25º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau (FITUB), promovido pela Universidade Regional de Blumenau (FURB).
Os artistas da Universidade de Brasília sobem ao palco do Auditório Heinz Geyer, no Teatro Carlos Gomes, para abrir o festival e iniciar a competição da Mostra Universitária Nacional.
Nesta categoria, os sete grupos selecionados serão avaliados pelo figurino, cenário, iluminação, concepção sonora, ator, atriz, conjunto de atores, direção e espetáculo.

Entrada Franca
Diferente dos demais espetáculos da Mostra, o Malva Rosa terá entrada gratuita e espera receber um público de mais de 800 pessoas, entre convidados, professores, alunos, profissionais de teatro e imprensa.
O ingresso precisa ser retirado com antecedência na bilheteria do Teatro Carlos Gomes, entre 12h30min e 20h desta quinta-feira.

As Mostras
Além da Mostra Universitária Nacional, o FITUB conta também com a Mostra Universitária Ibero-americana, Mostra Blumenauense de Teatro, Palco sobre Rodas e espetáculos convidados. Os ingressos custam R$ 15 e R$ 7 (meia-entrada).

Texto: Assessoria FITUB | Foto(s): Divulgação