O Sarau Eletrônico acompanhando o 25° Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau
terça-feira, 17 de julho de 2012
segunda-feira, 16 de julho de 2012
Irmanamos na mesquinharia
Irmanamos na mesquinharia
Magali Moser*
Cena de "A saga do sertão da farinha podre" Crédito da Imagem: Íria Pieritz |
Há uma semana do ano que se torna melhor viver em Blumenau. Os dias frios do mês de julho chegam acompanhados de expectativa e efervescência cultural com o Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau. Durante o FITUB, a cidade ganha outro ritmo. As ruas, novo colorido, novas caras, novos sons. É o momento de reencontro de pessoas queridas. E também do inevitável contato com a diversidade do mundo. Nestes dias, o diferente se incorpora com naturalidade à paisagem monótona. Quando, além do mês de julho, haveria a possibilidade de encontrar com alguém de Israel pela cidade? Em que outro momento o Teatro Carlos Gomes celebra o papel que lhe cabe de forma tão singular? Quando a arte toma conta do espaço urbano com tanta intensidade?
O mais antigo festival universitário de teatro do País chega a 25ª edição consolidado no calendário cultural. No entanto, é lamentável admitir que um festival desta envergadura tenha sido reduzido em dois dias por conta de outros eventos agendados no teatro. Como lembra o historiador Viegas Fernandes da Costa, apesar da vida longa, surpreende-se também por ainda não contar com o apoio dos governos municipal e estadual.
O descaso com a cultura e a tentativa de manter a cidade sob as definições de “ordeira”, “de família” e com “pessoas de bem”, para usar as palavras da peça A Saga no Sertão da Farinha Podre, foram tratados de forma cômica e crítica no espetáculo apresentado no último sábado, 7, na praça em frente ao Teatro Carlos Gomes, pelo Coletivo Teatro da Margem, de Uberlândia (MG), que em 2010 trouxe para Blumenau o premiado “Canoeiros da Alma”.
Na primeira incursão pelo teatro de rua, a peça dirigida por Narciso Telles reflete sobre a expulsão de artistas que passavam em caravana pelo Sertão da Farinha Podre, com a apresentação do espetáculo Antígona de Sófocles. O grupo enfrenta as hipocrisias de uma cidade que quer manter um rótulo. Há uma tentativa de manter o padrão de “cidade ideal”. As coincidências do espetáculo com Blumenau não param por ai. O texto traz ainda referências à prática de racismo e abuso de autoridade cometido por policiais miliares durante o FITUB ano passado contra um estudante mineiro de teatro. Em outro momento, um dos personagens utiliza um quepe em alusão ao mito de que a parte superior do prédio do Teatro Carlos Gomes tenha sido construída em homenagem a Hitler.
As questões do espetáculo mineiro são próximas à realidade de qualquer cidade. Tanto que ficou a dúvida se foi produzido especialmente para Blumenau. Um dos integrantes do grupo, o ator Samuel Giacomelli esclarece: “na verdade falamos da história de Uberlândia. Claro que em cada cidade que vamos inserimos alguns elementos para ficarmos mais próximos da situação local, mas são muito sutis essas mudanças. Definitivamente, somos todos vizinhos dessas mesquinharias e intolerâncias.”
Se o FITUB deixa uma lição é justamente esta: somente a arte é capaz de nos libertar dessas mesquinharias. A arte tem o estranho poder de nos comover profundamente. Ela fala de nós, de nosso âmago. Permite um olhar sobre nós mesmos. É indispensável por gerar formas mais sensíveis de ver o mundo. A arte só liberta porque é universal, e aí o grupo israelense que apresentou Dona Flor e Seus Dois Maridos nos prova mais uma vez esta constatação ao levar para os palcos do teatro uma obra genuinamente brasileira. A coordenadora do FITUB, Pita Belli, tem razão. Como apontou na cerimônia de premiação do festival, ontem à noite: O FITUB é um patrimônio de todos nós. Que venha logo a próxima edição!
*Magali Moser é jornalista. Este artigo foi originalmente publicado no blog http://jornalistamagalimoser.wordpress.com/
sexta-feira, 13 de julho de 2012
Os premiados do 25 FITUB.
Espetáculo Baden Baden Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
Espetáculo
Destaque da Mostra Paschoal Carlos Magno: LA VIDA
ES SUEÑO, da
Compañia de Titiriteros de la
UNSAM , Universidad Nacional de San Martin, Buenos Aires – Argentina
Figurino: Mirella Granucci, Luísa Bresolin e Alyce Assal, por BADENBADEN, da Universidade do Estado
de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis/SC.
Cenografia:
Eloy Machado, por ESTUFA, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro/RJ.
Iluminação:
Amauri Martins, por A VISITA DA VELHA SENHORA, da
Universidade Estadual de Maringá/ UEM, Maringá/PR.
Concepção
Sonora: Fábio Miranda por MALVA ROSA, da Universidade de
Brasília/UnB, Brasília/DF.
Conjunto
de Atores: Grupo BadenBaden, por BADENBADEN, da Universidade do Estado
de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis/SC.
Atriz:
Sara Mello Neiva, como Karola, Dona Anne e Joana, em MARIE, da Marie Cia. de Teatro, da
Universidade de São Paulo/USP, São Paulo/SP.
Ator:
Lucas Dilan, como Platona Jhonys, em A
SAGA NO SERTÃO DA
FARINHA PODRE, da Universidade Federal de Uberlândia/UFU –
Uberlândia/MG.
Direção:
Vicente Concílio, por BADENBADEN, da Universidade do Estado
de Santa Catarina/UDESC, Florianópolis/SC.
Melhor
Espetáculo: BADENBADEN, da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC,
Florianópolis/SC.
quinta-feira, 12 de julho de 2012
Estufa
"Estufa"
Viegas Fernandes da
Costa
Crédito da Imagem: Daniel Zimmermann |
O sentido é a ausência de
sentidos. Dadaístas já pensavam assim lá no primeiro quartel do século XX, e
outros antes, e outros depois. Se na urbanidade monstruosa onde bilhões de
vidas nascidas para desaparecer, esbarram-se na incomensurável solidão de
multidão, há esta sensação de crescer sob os limites de uma liberdade
controlada, sob um sol que se anuncia sobre um filtro, qual plantas que crescem
sob estufas. Ainda assim, há a arte que se pretende anúncio daquilo que julga importante;
a arte que se pretende ave, mas rasteja nos limites da técnica e da sacralidade
teórica; o ator que se deixa manipular títere sob as mãos de um diretor/deus.
Afinal, o que dizemos? Afinal, para que dizer? Afinal, o que representa a arte,
o que significa o teatro?
O Coletivo Kerencaferem, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, trouxe à 25ª. Edição do Festival
Internacional de Teatro Universitário de Blumenau o espetáculo “Estufa”, sob
direção de Nina Balbi e texto do próprio coletivo. Encenado em espaço allternativo
(uma sala de aula), “Estufa” construiu uma ação cênica que tinha como objetivo
primeiro discutir o estilo de vida nas estruturas urbanas contemporâneas, mas
que resultou principalmente em uma espécie de metateatro.
À plateia contorna um cenário
que reproduz uma espécie de estufa. Folhas secas cobrem o chão, e plantas
pendem do teto. A atmosfera é pesada. Um quadrado sombrio e úmido no qual se
desenrola a não-trama. A um dos cantos, uma cadeira na qual um dos personagens
(o ancião sábio protagonizado por um ator jovem que propositalmente não faz
qualquer esforço para parecer idoso) passará sentado por toda peça. Qual sua função?
Não há função.
Crédito da Imagem: Daniel Zimmermann |
Sobre o chão de folhas secas os
demais personagens interminavelmente armam uma espécie de piquenique. A toalha,
a louça, os talheres. Tudo deve estar exatamente no lugar. Também os próprios
personagens/atores necessitam constantemente reafirmar, afinal, os papeis que
supostamente representam, em uma espécie de trama dentro da não-trama. Toda
esta ordem, entretanto, esbarra na imposição da desordem, porque esta impera,
subterraneamente, e aflora na cena, destruída com violência. O primitivo se
impõe, a dor em todos os sentidos protagoniza. Ainda se tenta apelar a uma
pretensa razão, e uma voz onisciente (o diretor? Deus? os fatos sociais?) que
se anuncia pelo telefone, orienta a ação para que esta funcione. Mas a ação não
funciona, e qualquer tentativa de ordenamento esbarra no caos. O caos é tudo
que passa a existir, interna e externamente.
“Estufa” apresentou uma ótima
ambientação cênica e algumas interpretações convincentes, e se seu objetivo,
enquanto proposta dramatúrgica, era provocar incômodo e angústia na plateia,
conseguiu. Por outro lado, sua linguagem tornou-se por demais cansativa e
hermética, distanciando o público e resultando em uma espécie de vazio. Talvez
tenha sido justamente esta a intenção da diretora e do grupo; entretanto, cabe
questionarmos qual o lugar de um espetáculo como “Estufa” na cena contemporânea. Se, por um lado, esforça-se por anunciar a modernidade absurda
que construímos, por outro, esgota-se num experimentalismo já exaustivamente
explorado.
Ao final restou a frustração com
a própria peça, e a sensação de que o teatro morreu.
Texto completo de "La vida es sueño"
Na noite do dia 10 de julho, a Compañia de Titiriteros de La Universidad Nacional de San Martin, da Argentina, subiu ao palco do Teatro Carlos Gomes para apresentar a peça "La vida es sueño", uma adaptação do texto homônimo escrito pelo poeta e dramaturgo espanhol Pedro Calderón de la Barca em 1635.
O texto original possui três atos, e pertence à escola barroca. O espetáculo apresentado pelo grupo argentino nesta edição do FITUB foi livremente adaptado por Carlos Almeida, também diretor da peça.
No link abaixo você poderá ler a íntegra do texto original, do século XVII.
quarta-feira, 11 de julho de 2012
Depoimento da atriz Nica Barros no FITUB de 2012
Depoimento da atriz Nica Barros, que atuou na peça "Clown Bar" (Universidade Federal da Paraíba).
Depoimento da estudante de teatro Cíntia Daniela Galz no FITUB de 2012
Depoimento da estudante de teatro Cíntia Daniela Galz no 25. FITUB.
Depoimento do Diretor de Teatro Carlos Almeida no FITUB de 2012
Depoimento de Carlos Almeida, Diretor da peça argentina "La vida es sueño"
(Universidad Nacional San Martin)
Depoimento da atriz Angélica Amaral no FITUB de 2012
Depoimento de Angélica Amaral, atriz da peça "Clown Bar" (Universidade Federal da Paraíba)
Depoimento de Thiago Seifert sobre o FITUB
Assista ao depoimento do publicitário Thiago Seifert a respeito do 25. FITUB.
segunda-feira, 9 de julho de 2012
Depoimento de Irad Rubinstein
Assista ao depoimento de Irad Rubinstein, diretor da peça israelense "Dona Flor e seus dois maridos", à FURB TV e ao Sarau no Fitub.
A "Visita da velha senhora"
"Visita da velha senhora"
Viegas
Fernandes da Costa
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
Na noite de domingo, sob a direção de
Mateus Moscheta, o Grupo Teatro Universitário de Maringá (TUM), da Universidade
Estadual de Maringá, subiu ao Palco do Grande Auditório Heinz Geyer para
apresentar a peça “Visita da velha senhora”, escrita em 1956 pelo dramaturgo
suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990). A montagem dos paranaenses participa da
Mostra Universitária Nacional do 25º. Festival Internacional de Teatro
Universitário de Blumenau.
Sob forte influência de Bertold Brecht,
do qual Dürrenmatt era discípulo, “Visita da velha senhora” constitui-se como
uma “comédia trágica”, segundo definição de seu próprio autor, e conta a
história da pequena cidade de Gullen, empobrecida e esquecida pelo resto do
mundo. Sequer os trens param na estação de Gullen, e seus habitantes miseráveis
sobrevivem da sopa distribuída pelo poder público. Certo dia, entretanto, para
espanto de todos, desembarca na estação a senhora Clara Zahanassian, mulher
muito rica e que no passado fora vítima de um julgamento injusto que a degredara
de Gullen, fazendo com que sofresse as penas da vida. Retornara à cidade para
comprar a justiça que não tivera no passado, e oferta a cada família do lugar
uma verdadeira fortuna em dinheiro caso Alfredo Schill, seu antigo amante e o
responsável por seus infortúnios, fosse morto. A proposta leva então os
habitantes de Gullen da miséria material à miséria moral. Tendo vivenciado a
Segunda Guerra Mundial, Dürrenmatt, diferentemente de Brecht, não acreditava na
transformação social, e sua visão absolutamente pessimista a respeito da
natureza humana pode ser claramente percebida neste texto encenado pelo TUM. “Visita
da velha senhora” já recebeu infinitas montagens no Brasil e no exterior, bem
como exerce grande influência na obra de diversos autores. A título de exemplo destas
influências podemos citar o romance “Tieta do Agreste” (1977), do escritor brasileiro
Jorge Amado, e o filme Dogville (2003), dirigido pelo dinamarquês Lars Von Trier.
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
O espetáculo apresentado pelo grupo do
Paraná manteve-se bastante fiel ao texto original. Com um cenário austero, a
peça destacou-se principalmente pelo figurino e pela movimentação dos atores,
que modificavam os elementos cênicos a fim de criar as ambientações sugeridas
pela narrativa. Por outro lado, o excesso de nervosismo fez com que diversos
atores se atrapalhassem nas falas, o que acabou prejudicando a apresentação.
Também a iluminação nem sempre esteve adequada. Ainda assim, os aspectos
positivos da peça, sustentada pelo texto brilhante de Dürrenmatt, tornou
possível uma boa percepção do espetáculo por parte do público. Vale destacar
ainda algumas soluções dramatúrgicas encontradas pela direção para representar
determinadas cenas, como a do início do espetáculo, quando da passagem do trem
por Gullen. A solução encontrada pelo diretor para representar a composição férrea
foi capaz de criar uma estética profundamente poética.
Mesclando humor negro e drama, “Visita
da velha senhora”, apresentada pelo Grupo Teatro Universitário de Maringá,
apesar de não entusiasmar, conseguiu comunicar o espírito do texto de Friedrich
Dürrenmatt, levando o público ao incômodo do reconhecimento com uma natureza
humana vil, hipócrita e egoísta.
A última ceia, na visão de Mateus Moscheta Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
Vídeo de "A Visita da Velha Senhora"
Vídeo com trechos da peça "A visita da velha senhora", apresentada pelo grupo Teatro Universitário de Maringá, da Universidade Estadual de Maringá, no FITUB
domingo, 8 de julho de 2012
“Dona Flor e seus dois maridos”
"Dona Flor e seus dois maridos"
Viegas
Fernandes da Costa
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
“Dona Flor e seus dois maridos” subiu ao
palco do Grande Auditório Heinz Geyer como uma das peças mais aguardadas deste
25º FITUB. Adaptada do romance homônimo de Jorge Amado por Yoav Szutan e Irad
Rubinstein, foi encenada pelos alunos da Yoram Loewenstein Acting School, de
Tel Aviv. Dirigida por Irad Rubinstein, despertou curiosidade justamente por se
tratar de uma montagem israelense de um texto tão marcadamente baiano, bem como
pelo espanto do público ao saber que o mesmo seria falado em iídiche. Com
tantos elementos exóticos somando-se ao realismo fantástico e à sensualidade do
triângulo amoroso criado por Jorge Amado, não foi difícil prever a casa lotada na
noite de sábado, o que efetivamente aconteceu. Um público curioso e
entusiasmado acorreu ao Teatro Carlos Gomes para aplaudir, de pé, a despeito
das dificuldades de compreender o idioma dos atores e os problemas técnicos com
as legendas, uma montagem primorosa e bastante fiel ao texto original.
Publicado originalmente em 1966, “Dona
Flor e seus dois maridos” conta a história do romance entre Flor e Vadinho,
este um vagabundo mulherengo que vivia metido em cassinos e prostíbulos. Apesar
de traída e explorada por Vadinho, Flor amava seu marido, amante intenso que
sempre foi. Depois que este morreu subitamente em pleno carnaval de Salvador,
Flor envolve-se com um farmacêutico casto e tímido, incapaz de satisfazê-la
sexualmente. Frustrada, inconscientemente chama por Vadinho, que imediatamente
acorre do além para atender aos apelos da esposa, provocando uma série de
confusões e criando uma espécie de triângulo amoroso. A Montagem dirigida por
Rubinstein mantém a estrutura original do romance, bem como sua fábula e seus
principais personagens, e parece ter sofrido influência direta do filme
homônimo de 1976, dirigido por Bruno Barreto. Leva para o palco os principais
elementos identitários da cultura baiana, tão caros a Jorge Amado. O candomblé,
a culinária, o carnaval de rua, o erotismo, bem como a hipocrisia oportunista
das elites baianas, estão perfeitamente retratadas na peça israelense. Vale
destacar ainda a deferência com que o grupo israelense se relacionou com o
texto brasileiro, considerado por eles um clássico de nossa literatura.
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
Cientes das dificuldades que o idioma
poderia representar para uma plateia brasileira, e preocupados em estabelecer
uma empatia direta com o público, algumas palavras e trechos da peça eram
falados em português, principalmente aquelas capazes de despertar um
reconhecimento pátrio. Não por acaso, a palavra Bahia bailava exaustivamente na
boca dos atores, nativos de um país no qual o sincretismo cultural não é tão
intenso quanto no Brasil, o que soava um pouco estranho. Afinal, esperava-se
que a simples menção ao estado nordestino pudesse despertar na plateia do FITUB
uma simpatia identitária, o que obviamente não aconteceu. A parte isto, os
atores conseguiram envolver o público, despertar o riso e tornar o espetáculo
perfeitamente inteligível e rico.
“Dona Flor e seus dois maridos” trouxe
ao palco os ritmos de Salvador, mesclando muito bem o profano e o sagrado.
Terreiro, puteiro, cassino e cozinha tomavam a cena sem que houvesse a
necessidade de um cenário propriamente dito (salvo a existência de uma pequena
mesa com ingredientes da culinária de Salvador, ao canto esquerdo do palco, não
há outros elementos cenográficos no espetáculo). A dramaturgia aconteceu
principalmente na interpretação dos atores, nos ritmos da percussão capazes de
nos devolver ao estado sagrado do primitivo, na iluminação e no figurino – este
um espetáculo à parte. Muito interessantes e criativas, também, as soluções
encontradas pela direção para responder às necessidades da narrativa. A roleta
do cassino, por exemplo, que tanto seduzia Vadinho e o levava à perdição,
surgia no palco representada por uma excitante mulher rodando pornograficamente
sua saia de cores alternadas (o rubro e o negro), e que engolia, ao final, as
fichas do incauto jogador.
Repleto de humor e sensualidade,
apresentando soluções dramatúrgicas de grande criatividade, e com atores
entregues aos tipos que representavam, “Dona Flor e seus dois maridos”, sob a
direção de Irad Rubinstein, surpreendeu, divertiu e mostrou a universalidade de
que é capaz a obra de Jorge Amado.
Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
sábado, 7 de julho de 2012
Clown Bar
Clown Bar
Viegas Fernandes da Costa
Sob a direção de José Tonezzi, o
Núcleo de Experimentações e Estudos do Cômico (NEECO) da Universidade Federal
da Paraíba subiu ao palco do Pequeno Auditório Willy Sievert no segundo dia do
FITUB para apresentar ao público a peça “Clown Bar”, um conjunto de esquetes
cômicos que não possuem relação entre si, salvo o fato de estarem ambientados em
um bar.
O cenário é muito simples, apenas
uma mesa coberta por uma toalha e ocupada por uma garrafa de bebida que levava
no rótulo o símbolo de algo venenoso. Neste bar cinco atores clowns revezam-se
nas cenas cômicas e representam diversos tipos: a balconista ordinária, o
bêbado esfarrapado, o playboy, o banhista afetado e esnobe, o pintor ridiculamente
travestido à moda clássica e o monge anão com pés de pato (personagem
encantador e destaque da peça). As cenas apresentam uma série de gags
clássicas, e algumas propõem uma reflexão sobre o fetiche de produtos culturais
propalados pela mídia e consumidos pelo público numa lógica de “fast-food”
descartável. Neste sentido, a montagem do grupo da Paraíba mantém-se
contemporânea. Ao fazer uso de clichês e gags clássicas, desperta o riso, mas
também nos leva a questionamentos do tipo: afinal, o que faz tantos e tantos de
nós a “curtir”, por exemplo, uma “dança da motinha”?
Se, por um lado, “Clown Bar”
tinha como principal propósito divertir e provocar gargalhadas no público,
atingiu seu objetivo. Por outro, não apresentou novidades, e muitas cenas
tornaram-se excessivamente longas e cansativas. Flertando com a malícia e o
absurdo, e justamente por apresentar um universo cômico capaz de ser
reconhecido pelo público, despertou empatia da plateia, mas também fez com que
os números se tornassem por demais previsíveis. Presos aos tipos, os atores
acabaram por reproduzir estereótipos clássicos sem demonstrar grandes recursos
de interpretação. Exceção feita ao personagem final da peça, um monge anão e
corcunda, com pés de pato e braços cortados, figura grotesca elevada à
graciosidade pela qualidade de interpretação de seu ator.
“Clown Bar”, uma peça divertida,
mas que podia ter mostrado mais.
Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza
Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza.
Viegas Fernandes da Costa
Momento da peça apresentada pelos alunos da UnB. Crédito da imagem: Daniel Zimmermann. |
Malva Rosa é flor, e de muitos
nomes, rosa louca, amor dos homens.
Malva Rosa pode ser Aurora, Mimo de Vênus, mas pode também ser uma
papoula de duas cores. Plantada sob o sol, em solo fértil, Malva Rosa não
suporta água em excesso. Malva Rosa é planta fêmea, é segredo, incerteza.
Em uma alteração de protocolo, o
Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau, na edição do seu
jubileu, abriu as cortinas com uma peça da mostra universitária nacional. E acertou.
Trouxe ao palco do Teatro Carlos Gomes, em sua primeira noite, o grupo Casulo
Dramaturgia de Atores, da Universidade de Brasília, com o espetáculo “Malva
Rosa”, uma montagem do texto de Newton Moreno intitulado “Agreste (Malva Rosa)”.
E disse acertou porque os atores do Planalto Central comoveram e entusiasmaram,
como poucas vezes se viu nas edições mais recentes do FITUB, o público presente
na noite de quinta-feira.
O texto de Newton Moreno é
primoroso, rico de significados e possibilidades, e não de todo estranho à
plateia do Vale do Itajaí. Em 2010 o SESC trouxe a Blumenau e Brusque o
espetáculo “Agreste”, encenado pela Cia Razões Inversas, de São Paulo. À época
eram apenas dois atores revezando-se nos papeis, tendo como principal recurso o
próprio corpo. Agora, quase uma dezena de atores, acompanhados de músicos e cantores,
explorando as muitas possibilidades que uma montagem pode oferecer, para contar
uma história de amor e sofrimento, absolutamente linear, ou seja, com começo,
meio e fim – algo tão raro nas propostas contemporâneas.
Malva Rosa conta a história de
amor entre Etevaldo e sua companheira no interior do agreste brasileiro. Tímidos
como caramujos, tolhidos na ignorância e na crença de um Deus castigador,
demoram a ultrapassar os limites que lhes são impostos. Há uma cerca a lhes
separar os corpos, frágil e incerta, na qual um buraco que a cada dia aumenta
mais convida à passagem. Esta cerca, entretanto, é apenas a fronteira visível, tangível,
permissiva. Há outras fronteiras muito mais difíceis de reconhecimento, muito
mais opressoras, fronteiras inconcebíveis de se pensar, de se falar, de se
querer ver. Malva Rosa (ou Agreste), texto claramente inspirado no universo de
Guimarães Rosa, conta assim uma história de ignorância, revelação e expiação.
Contundente, discute e denuncia o autoritarismo e a cegueira da verdade sem,
entretanto, renunciar à necessidade do movimento. Porque há felicidade no
movimento, na migração, ainda que o preço seja alto, ainda que o preço seja a
própria vida. Para além, ainda que ambientada em um agreste atrasado, de uma
temporalidade quase estática e arcaica, “Malva Rosa” dialoga com temas
contemporâneos, como a homofobia, a promiscuidade do discurso religioso, os
desmandos de um coronelismo que ainda sobrevive em nosso cenário político, a
hipocrisia.
O que o grupo Casulo Dramaturgia
de Atores levou para o palco foi apuro técnico, sensibilidade, poesia, cuidado
estético e muita entrega. A peça iniciou com os atores saindo de redes suspensas
como quem sai de casulos. O cuidado com a coreografia, com a iluminação, com a
sonoplastia, o cenário austero (composto por redes e caixotes cuja posição os atores
modificavam com o transcorrer da peça, atendendo às necessidades da composição),
criou uma estética profundamente poética. A “fotografia” de “Malva Rosa” é
primorosa!
Técnica vocal, de canto, e muita
disciplina, foram a tônica da apresentação. Como se não bastasse, de um dos
camarotes laterais do teatro, músicos e cantores tocavam a trilha sonora da
montagem. Destaque especial para a cantora lírica, cuja voz preencheu cada
canto do grande auditório. Simplesmente comovente!
O espetáculo apresentado pelos
acadêmicos da Universidade de Brasília funcionou muito bem porque efetivamente estruturado
no coletivo. Difícil apontar algum ator ou atriz que tenha se destacado, e
alguns deslizes individuais de representação foram totalmente absorvidos nesta
coletividade. Méritos da direção, assinada por Alice Stefânia.
Ao final, quando o sentido de
Malva Rosa se revela, e a personagem se reconhece no momento derradeiro, quando
o fogo que purifica toma conta da vida e a luz revela a nudez que morava na
ignorância e na escuridão, temos um dos momentos mais bonitos de todo
espetáculo, plasticamente perfeito, e carregado de sentidos.
Ainda é cedo para qualquer
prognóstico, mas reunindo tantas qualidades, e a julgar pelo entusiasmo do
público, revelado na força dos aplausos, “Malva Rosa” é forte candidato ao
prêmio de melhor espetáculo desta edição do Festival Internacional de Teatro
Universitário de Blumenau.
Malva Rosa é flor, e de muitos nomes, rosa louca, amor dos homens. Crédito da imagem: Daniel Zimmermann |
sexta-feira, 6 de julho de 2012
Agreste (Malva-Rosa)
O Sarau no Fitub publica o texto "Agreste (Malva-Rosa)", de autoria de Newton Moreno. Sob o título "Malva Rosa", este texto foi montado pelo grupo Casulo Dramaturgia de Atores, da Universidade de Brasília, e abriu o 25. FITUB.
Cena do espetáculo Malva Rosa, apresentado pelo grupo Casulo Dramaturgia de Atores (UnB) na abertura do FITUB de 2012. (Crédito da imagem: Daniel Zimmermann) |
Agreste (Malva-Rosa)
Newton Moreno
A idéia deste texto é servir como exercício de narrativa
para um ator-contador(atriz).O narrador pode assumir todas as outras personagens, viúva,
o padre, o delegado,ou as vozes dos moradores. Ou dispor de outro(s) ator(es)
que cria(m) uma partitura física para determinados momentos da estória. Da
união destas duas linguagens – a oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento
– será feito o espetáculo.
Um(a) narrador(a).
Velho(a) contador(a) de estórias. Daqueles que reúnem um
grupo ao redor da fogueira ou embaixo de uma árvore com uma viola/sanfona, pontua
suas histórias com as músicas e acordes que saem de seu instrumento. Ele(a)
recebe o público, dá o clima de cada passagem do texto, pausas, enfim, é o
grande condutor da cena.
CONTADOR(A)
Ele andava muito para encontrá-la. Mas quando se viam,
ficavam, no mínimo, a cinco metros de distância. Nem um centímetro a mais ou a menos. Exatos
cinco metros. Sempre. Uma cerca os separava.
Ela sorria de um lado, ele, do outro.
Ele deixava uma flor na cerca, ela ia buscar.
Ela deixava seu perfume na cerca, ele ia buscar.
Eram tímidos como caramujo. Precaviam-se. Se chegassem muito
perto, Deus sabe o que aconteceria. Tinha alguma coisa no amor deles que não
devia acontecer. Mas aconteceu.
Por meses, anos. Eles e a cerca.
Ele deixava um beijo na madeira do cercado, ela colhia.
Foram se estreitando. Chocando sua intimidade.
Confiavam um no outro, que nem a terra na chuva.
Ele deixava sangue no arame da cerca, ela ia enxugá-lo.
Às vezes, podia demorar um mês para se encontrar. Ela
deixava um pedaço de chita do vestido, ele amarrava na enxada. Era lavrador no Nordeste
do país. Reino de areia e de sede. Era honesto. Forte. De pele marcada. Não dá
para saber a idade. Eram como rochas velhas secando na espera. Sua cultura era
o sol. Sua família era o sol.
Ele deixava cuia. Ela colocava cuscuz. Ele comia, sorrindo.
Ele devolvia a cuia e ela ia buscar e... descobriram um furo na cerca!!!
MÚSICA
Os atores que representam o casal estudam o buraco, cada um
do seu lado. Tempo.
CONTADOR(A)
Incertos. Fingiram não vê-lo. Era um buraco enorme como o
sertão. Fingiram por uma semana. Duas. Um mês. A dúvida.
Mas o buraco crescia, como querendo se exibir. Amostrado. A
cada vez que voltavam, estava maior.
E eles de butuca no furo. Parecia um açude, tentando-os com
sua água escura, escura, cor de enigma.
Se ele tocasse nela? Se ela aceitasse ele?
Às vez, é preciso muita coragem para dar um passo.
TEMPO. Ação dos atores estudando o buraco.
CONTADOR(A)
Naquela manhã, ela foi sozinha. Firmou-se frente ao buraco.
Tomou coragem e cruzou. acalmou-se aos poucos. Respirou, deu um passo, dois.
Parecia um astronauta movimentando-se pela primeira vez na Lua. O ar é o mesmo.
O Sol é o mesmo. O coração era outro. Uma criança brincando onde não devia.
Trelosa. O que ela não sabia, era que ele estava lá. Olhando-a boquiaberto
detrás do arbusto. Ela dançava, grunhia, sujava-se de terra.
Ele sorria.
Quando se perceberam, paralisaram. Mas muito, muito tempo.
Ele ultrapassou o limite dos 5 metros, aos poucos. Alcançou o hálito nervoso dela.
Talvez 45 centímetros. Atravessaram!
MÚSICA. Poeira subindo.
CONTADOR(A)
Correram. De tanta euforia e medo. Levantando uma nuvem de
poeira por onde passavam. Uma nuvem como há muito o Nordeste não via.
Fugiram para longe.
Pensaram: chegariam no mar de tanto passo.
Chegariam, se tivessem corrido esse tanto de chão pro outro
lado.
Avexaram-se no passo com medo de mudar de idéia. O medo deu
pressa. As lágrimas d$ela tentavam marcar no chão um caminho de volta. Num
determinado ponto, deram-se as mãos e tranquilizaram-se.
Perfuraram o Brasil mais fundo. Desmontaram dos pés no meio
da seca. E pensaram que não devia existir um lugar mais árido que aquele. Mas o
Nordeste surpreende a gente. Vai ter sempre uma rês mais murcha e um filho mais
moribundo. O peito arfava de contentamento e pavor. Era como se inspirassem
alegria e expirassem receio. Uma pausa de um silêncio pesado.
Desviavam olhares, cabisbaixos. Não queriam mostrar a dúvida
passeando dentro dos seus olhos. Pior: não queriam ver nos olhos do outro a
dúvida.
Voltar? Mesmo se quisessem, não saberiam como. As pegadas
úmidas já nem existiam; foram sorvidas com força por aquela terra saudosa da
água.
Deitaram os corpos na sombra de um mandacaru. Na margem do
que fora um riacho. O sol já lhes roubara o senso, o tino.
Algo morno crescia na alma. Era um vapor no forno, no berço,
na fôrma do novo afeto. Estavam à beira de um desmaio. A razão já se afogava
com o sol a pino quando uma mulher se desenhava ao longe feito miragem. Veio lenta,
feito a justiça. Aproximou-se.
Falava com eles, mas eles não ouviam uma só palavra. Em
lugar das palavras, só conseguiam escutar os sons das águas. Da sua boca tudo
soava gotas de chuva, barreiros cheios, açude vazando, água da calha. Os sons
dela eram todos molhados. Ela falava como um rio, aquosa.
Foi essa mulher quem os salvou.
Levou ao povoado e tratou de acomodá-los.
Apearam neste arraial. Um pouco de jabá, sombra e água
barrenta e recobraram o prumo.
Lá, eles plantaram a vida.
Música pára. O texto segue com a poeira ainda alta.
Construíram um casebre.
Cercaram com arame, mas para se prender por dentro.
Não queriam conhecer os outros, antes de Saberem de si.
Até então, nada das coisas que se permitem marido e mulher.
A carne é um compromisso mais definitivo. Passou esta cerca, o gado é marcado.
E a noite chegou mais clara que o dia. E os olhos não se
prendiam num abraço de jeito maneira. Mas os dois foram se descobrindo aos poucos.
Ela começou pelo seu rosto. Os cabelos dele. Escuros,
cabeleira cabocla de filho de índio brabo. Farto e espesso. Devia de pesar na mão.
Devia de quebrar pente fraco.
Ele fazia o percurso inverso. Pôs os olho nos cambito da
moça. Umas canela fina, mas bronzeada, que lhe agradaram os sentido.
E assim se seguiu a malevolente investigação: ela descendo
os olhos, ele subindo a vista.
Ela admirava era a dentição dele. Perfeitinha. Os dentes que
faltavam em cima, ele tinha embaixo; e vice-versa. De modo que quando ele sorria,
os dentes se encaixavam num sorriso de um fileira só, mas sem buraco. Mas
sorria bonito ele!
Uma semana depois, eles se tocaram. Antes disso, só as mãos no
meio da correria.
Ouvia-se uma pele rachando na outra, acostumando-se um ao
outro, deixando o tempo passar. Um dia, ela se escondeu embaixo do lençol; ele
apagou o candeeiro. Por anos, este foi o sinal, o código. Sumir-se embaixo do
lençol. Cobrir a luz com o escuro. E ele apagou muito aquele pavio.
Como marido e mulher, viveram por vinte e dois anos.
Até hoje.
Música cessa. Poeira baixa. Homem deitado, mulher a seu
lado.
Velhinhas entoam incelenças.
CONTADOR(A)
Morto, ainda vestido para o trabalho, ele dormia sob a mesa
da sala. Uns candeeiros velavam o corpo, resguardando sua imagem.
As vizinhas foram adentrando. Vinham fazer quarto pro morto.
Já cantavam em suas casas e traziam seus cantos no suspiro da noite. Todas
empregavam as melhores palavras de um parco vocabulário para defini-lo.
VOZES
“Da mais alta estima”, “Pareia de Anjo”, “Elegante como
Jesus”, “Íntegro como uma rocha”.
CONTADOR(A)
Era o mais elaborado do seu idioma. O resto era oração e
cântico.
Uma vizinha sentenciou triste:
VE1
Ele desapareceu a ela.
CONTADOR(A)
Eram um casal benquisto. Discreto. Pouco festivos. Trabalhadores.
Sem filhos. Nem seus nomes eram conhecidos. Seu Zé, Dona Maria, chamavam eles.
(Pausa)
Quieta. A noite parecia uma pergunta difícil. Armava um
bote/arataca.
(Pausa)
A sala povoou de mosquito e de mulher. Nunca tão farta. Nem
de um, nem de outro.
Os homens explodiam seus sentimentos em rojões. Segredavam
às estrelas saudades e estima.
Desenhavam lágrimas de luz no céu.
O padre estava a caminho para a extrema-unção. Amuada e com
fome, a viúva remendava o terno puído para o enterro. O que deveria vesti-lo no
casamento. Alguém lhe trouxe um pedaço de cuscuz com leite. Estacionou agulha e
linha e comeu. Construiu uma figura triste. Do nada, irrompeu numa careta
grotesca e chorou. É muito triste uma mulher comendo e chorando. Ainda mais
viúva. Comeu até a última gota. Levantou-se e caminhou até Jesus. Beijou o
quadro na altura do coração. A vela apagou-se, só se via a luz no coração de
Cristo. Deus!! Jogaria terra sob o morto. Murmurando, pedia força para fazê-lo.
Um cortejo entornou na cama o corpo. Cabisbaixos,
retiraram-se. O silêncio. Um silêncio que esfriava o sangue e que parecia nunca
mais ir embora.
VE1
Quer vesti-lo, fia?
VE2
Ou quer que nóis ajude?
VIÚVA
Não. Pode trocá.
CONTADOR(A)
Um minuto depois, deixou escapar...
VIÚVA
Nunca que vi Etevaldo nu.
CONTADOR(A)
Revelou. Como se nem ela mesma quisesse ouvir aquela
confissão.
VIÚVA
Fechava os olhos quando ele me machucava.
CONTADOR(A)
À noite. No breu. Através do lençol. Desconhecia aquele
corpo, mas amava-o. Confessou, roxa de vergonha. E era a primeira vez que ela
falava com alguém mais que duas sentenças.
VIÚVA
Se for pra eu trocá, vou ter que apagar o candeeiro. Aí vai
dar uma trabalheira da gota serena.
CONTADOR(A)
Pediu que ficassem. Virou de costas e instrumentalizou-as
com o terno. Recolhida. Como se houvesse alguma indecência em ver o marido nu.
As velhinhas vestideira começaram a descascá-lo com técnica e indisfarçável
contentamento.
VE2
Quanta virtude, meu amor.
VE1
Mas quem viu já conhece...
VE2
...Quem nunca viu não sabe o que é.
VE 1 e 2
“Veste esta mortalha
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô vestir
Foi a mãe de Deus.
Amarre este cordão
Quem mandô foi Deus;
Quem mandou marrá
Foi a mãe de Deus
Calça essa meia
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô vestir
Foi a mãe de Deus
Calça esse sapato
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô calçá
Foi a mãe de Deus
Bota no caixão (ou rede)
Quem mandô foi Deus;
Quem mandô Botá...
VE1 (interrompendo o canto)
Oxente, cadê?.
CONTADOR(A)
A viúva já tinha entregue o paletó.
VE1
Maria de Deus, cadê a trouxa?
CONTADOR(A)
Assustou-se a velha.
VE!
Faz tempo que eu num vejo um, mas isso aqui não é peru.
VE2
Não se avexe não. Espie melhor. Procure direito.
CONTADOR(A)
De costas, a viúva se perguntava ...
VIÚVA
Que trouxa?
VE2
Deve de tá escondido. Às vez tem que ajudar pro bichinho
florescer.
VE1
Mulé, ou eu perdi a vista de vez ou a piroca dele é do
tamanho de um cabelo de sapo.
VE2
Deixe eu lhe ajudar ...
VE1
Menina, cadê a bilola?
VE2
...a bilunga?
VE1
...a bimba?
VE2
....o ganso?
VE1
....a macaca?
VE2
....a peia?
VE1
...o maranhão?
VE1
...a manjuba?
VE2
....a macaxeira?
VE1
....a pomba?
VE2
....o pororó?
VE1
o quiri? Olhe ali.
VE2
Não, não tá.
VE1
Creio em Deus Pai todo Poderoso..
VE2
Olhe a teta.
VE1
Menino, isso parece uma quirica
VE2
Creio em Deus Pai, mulher. É um tabaco.
VE1
É mulher. É mulher.
CONTADOR(A)
Disse e saíram correndo casa afora.
AS VELHAS
O marido dela é fêmea!!
VIÚVA
Posso me virar?
CONTADOR(A)
Súbito, uma multidão fez fila na porta do quarto. Uma mulher
despida sob a cama e outra de costas olhando o retrato de Jesus.
A viúva não entendia nada. Não entendia a morte. Não
entendia homem. Naquele momento, só entendia a perda. Incrédulos, alguns faziam
o sinal da cruz, outros se penduravam na janela para procurar atentos pelo
peru. Já havia quem tomasse partido dela.
VOZ1
“Foi enganada a coitadinha. A sem-vergonha iludiu a
bichinha.”
CONTADOR(A)
Outros mais radicais:
VOZ2
“Elas vieram foi fugida para sujar nosso lugar com essa mundiça.”
CONTADOR(A)
Facções se formavam e a notícia galopava. Nisso, o padre
chegou e foi direto cobrir o defunto, ou melhor, a defunta. Expulsou a todos.
Trancou-se mais ela. Ressuscitou um candeeiro. Tomou coragem várias vezes para
falar algo. Ponderado, começou:
PADRE
Minha filha, você dormiu com uma mulher.
VIÚVA
Não, seu padre, eu dormi com Etevaldo. E nunca que gostei.
Sabia que num devia.
PADRE
Creio em Deus Pai.
VIÚVA
É por isso que o senhor tá brabo?
PADRE
Não.
VIÚVA
Dormimo junto porque ele gostava. Mas ele me jurou
casamento. Se o senhor quiser, eu me caso com ele morto mesmo. O vestido tá
aqui guardado.
PADRE
Não é ele, mocinha. É ela.
VIÚVA
É Etevaldo! Benza ele, benza.
PADRE
Nunca!
VIÚVA
Benza, padre, ele é devoto de Santo Antônio. Temente a Deus.
Queria até casar na Igreja.
PADRE
Vou rezar por você.
VIÚVA
Por mim, não, padre. Reze por ele. Ajude ele a morrer.
PADRE
Não posso. Morreu em pecado escuro.
VIÚVA
Dê descanso a sua alma.
PADRE
Tenho que chamar o bispo na capital.
VIÚVA
Abençoe o sono dele.
PADRE
Não posso! Todo mundo sabe que eu a vi sem roupa.
VIÚVA (chorando e corrigindo)
Etevaldo...
PADRE
Etevaldo. Eles sabem que eu sei que ele é mulé. Pelo menos
se tivesse me chamado antes, nós teríamos feito de outro jeito. Ninguém tomaria conhecimento,
minha filha. Já enterrei gente que nem você e ela... Etevaldo. Gente que morreu
fazendo menos barulho.
(Pausa) Você o ama?
VIÚVA
Num sei o que é isso não. Eu queria ir mais ele.
PADRE
Que Deus lhe abençoe. (Abre a porta aos gritos)
Herege! Herege!!
CONTADOR(A)
Estatelada no chão, viu o padre sair da casa. Levantou-se a
custo. A casa estava vazia agora. Escura. Agarrou-se ao candeeiro. Cobriu seu marido.
Sem investigar-lhe a nudez. Incomodou-a estar só. Queria cantar para ouvir
alguém. Não sabia se Jesus estava com ela ou não. Tinha Deus como uma certeza,
mas às vezes achava que Deus podia aparecer, tomar um café, enrolar um fumo.
Ficar mais íntimo. Gritos rodeavam a casa.
VOZES
“Belzebu!”.
CONTADOR(A)
O delegado apeou na porta dela.
VOZES
“Filhas do Demo!”
CONTADOR (A)
Disparou uns três tiros pro alto para tanger o gado revolto.
VOZES
“Mulesta da peste!”
CONTADOR (A)
Mugiram contrafeitos, mas desmilinguiram-se para dentro das
moitas. Entrou chutando a porta. Arrastava-se e trazia uma nuvem de muriçoca/mosquito
em torno do seu cheiro. Sentou-se de frente para a viúva. Nem olhou o defunto.
DELEGADO
A senhora provocou uma desordem arretada nos arredores. Sabe
quem eu sou? Num me conhece, não? Pois eu sou o delegado. Vim a mando do
Coronel Heráclito, conhece? Conhece, sim.
Trabalhou nas terra dele. Foi ele quem lhe deu sustento.
Disseram que a senhora nunca que pegou bucho.
Uns até desconfiavam, mas acharam que a gala de seu marido
era rala. Coronel num gostou de saber de sua historinha, não.
Mandou vim ver de perto essa semvergonhice. A senhora deve
de saber que amanhã findando o enterro, a senhora vai presa. Isso quer dizer
depois que a senhora arranjar um lugar para enterrar seu macho.
(ri ).
Ele mandou dizer que nas terra dele não se enterra. Vocês
são que nem as quenga, as rapariga,
as catráias, as sapuringa, que são tudo enterrada longe, no
eito, nas brenha esquecida.
Nas terra dele só esterco bom. E vocês fedem a adubo
estragado.
Vai ter que arranjar outro chão para enfiar esse corpo. Se
enterro nesta terra, erva daninha nasce.
(olhando o caixão)
Menino, não é que ele é mulher mesmo? Mas é feio feito um
macho. E tu ainda tratou bem dessa mulé. Tá gorda que nem filho de ladrão quando
o pai tá solto. E tu num sabia que coronel num gosta dessa esfregação de fêmea
com fêmea. Sua saboeira safada. Amanhã, na cadeia, a senhora vai conhecer macho
para nunca mais se confundir.
E para gente num se confundir, para todo mundo saber qual é
a tua raça, coronel quer lhe marcar a cara, como deve se ser feito com todas as
vacas do rebanho. (Sai o delegado)
CONTADOR(A)
Ela se sentia um prato de comida estragada. Uma carniça. Um
penico. Um escarro. Uma doença. Um pus. Um cancro. Uma gota. Suja, suja,
imunda. E não entendia porque. Não tinha cabeça para entendimentos.
Se pudesse falaria no ouvido de Deus. Cantou sua fé com
devoção sincera, o que dá no mesmo. Olhe, Música e Deus ninguém vê.
Fé ninguém toca, nem se mede. Mas juro: acontecia livre cada
centímetro de Jesus, na voz dela.
Tempo de seu canto. Cena parada. Contador a acompanha com
instrumento.
CONTADOR(A)
Lembrou da dor e do alívio. A única imagem era a da mãe. Que
fechava feridas com um sopro e ervas. Lembrou quando sangrou de chico da
primeira vez. Ela gritava: “Mãe, tô vazando sangue”. E a mãe dizia: “É assim
mesmo, fia. Crescer dói, de vez em quando”. Era a imagem de ninho que precisava
para dar-lhe forças. E parecia ter o rosto da mãe desenhado na parede interna
da pálpebra. Sua mãe cuidando da prole. Morrendo de fome, mas alimentando a
cria. Sabia que ela cortaria uma mão se lhes faltasse carne pra comer. Amor? o
que seria isso? Dor alívio? Quando dava
de chover, sua mãe punha os filhos tudo na chuva para aguar. Para crescer
rápido. E só saíam de lá quando a chuva minguasse.
Queria estar com a mãe, queria ter ido no lugar dela quando
morreu. Assim como trocaria de lugar com Etevaldo agora.
(Pausa)
Foi só delegado sair latindo pelo caatinga, e os gritos
voltaram. Um grupo velou a madrugada inteira com impropérios, xingamentos, escárnios,
maldições, pragas. Criaram um ódio.
Desenterraram a pior parte deles.
Desenterraram as piores palavras da língua.
Nem bem a madrugada se punha, trancaram portas e janelas da
casa delas. Envergonhavam-se delas. Queriam apagá-las de suas memórias.
Cercaram a casa. Enterravam-nas vivas.
Não se sabe quem foi, quantos eram. Nem quem acendeu o
primeiro fósforo. Começaram
a incendiar o casebre.
Mal sabiam que, dentro, a viúva agradecia a benção de morrer
com Etevaldo.
Temia muito mais viver sem ele, por certo. Tinha cantado
bonito, Deus tinha lhe ouvido afinal. O fogo já empenava as paredes. Mesmo
assim, a viúva acendeu o candeeiro. Viu-se por inteiro pela primeira vez.
Descobriu então o que era mulher. Pôs-se ao lado de Etevaldo. Beijou-o. Na
boca. O que nunca tinha feito. Abriu-lhe os olhos no meio do beijo, enquanto o
fogo ganhava a casa inteira.
(Pausa)
O dia amanhecia e as fagulhas resistiram queimando por dias.
Cinzas. Silêncio. As fagulhas, em suspenso, como um eco, pairavam, sobre lavouras,
varais e gerações.
FIM
APÊNDICE
CONTADOR
“Uma lavadeira,
um beija-fulô.
Lavava os paninhos
De Nosso Sinhô.
Quanto mais lavava
Mais sangue corria,
Nossa senhora chorava
E o judeu sorria...”
Cruel, a natureza é
Dá o sol na desmedida
Dá um corpo na desmedida
Dá o amor na desmedida.
Texto originalmente publicado na revista Sala Preta, v. 4, n. 1 (2004). O pdf pode ser lido em http://www.revistasalapreta.com.br/index.php/salapreta/article/view/75
quinta-feira, 5 de julho de 2012
Mudança súbita na história de dois personagens abre o 25º Fitub
Mudança súbita na história de dois personagens abre o 25º Fitub
Depois de 22 anos juntos, tudo pode mudar para um homem e uma mulher bem esquisitos. Esta é a trama de Malva Rosa, que abre oficialmente nesta quinta-feira (5/7), a partir das 20h30min, o 25º Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau (FITUB), promovido pela Universidade Regional de Blumenau (FURB).
Os artistas da Universidade de Brasília sobem ao palco do Auditório Heinz Geyer, no Teatro Carlos Gomes, para abrir o festival e iniciar a competição da Mostra Universitária Nacional.
Nesta categoria, os sete grupos selecionados serão avaliados pelo figurino, cenário, iluminação, concepção sonora, ator, atriz, conjunto de atores, direção e espetáculo.
Entrada Franca
Diferente dos demais espetáculos da Mostra, o Malva Rosa terá entrada gratuita e espera receber um público de mais de 800 pessoas, entre convidados, professores, alunos, profissionais de teatro e imprensa.
O ingresso precisa ser retirado com antecedência na bilheteria do Teatro Carlos Gomes, entre 12h30min e 20h desta quinta-feira.
As Mostras
Além da Mostra Universitária Nacional, o FITUB conta também com a Mostra Universitária Ibero-americana, Mostra Blumenauense de Teatro, Palco sobre Rodas e espetáculos convidados. Os ingressos custam R$ 15 e R$ 7 (meia-entrada).
Texto: Assessoria FITUB | Foto(s): Divulgação
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