Um festival valioso
Viegas Fernandes da Costa
O inverno este ano soprou o alento aconchegante que apenas um festival de teatro pode nos dar. Depois de um 2009 onde sentimos sua clamorosa ausência (a primeira, após sucessivos 22 anos), aconteceu a 23ª edição do Festival Internacional de Teatro de Blumenau, organizado pela FURB e ansiosamente aguardado não apenas pela comunidade artística e pelo já cativo público que assiste aos espetáculos, mas por todos aqueles que compreendem a importância e o significado dos bens culturais no desenvolvimento integral e sustentável de uma sociedade. A não realização do Fitub no ano passado criou, assim, uma expectativa ainda maior para a edição deste ano. A grande dúvida era saber se o evento realmente aconteceria e se a Universidade manteria seu caráter anual, respondendo a uma das reivindicações da classe artística reunida na 4ª Conferência Municipal de Cultura, que naquela oportunidade manifestou-se contrária à anunciada bianualidade do Fitub. Incertezas à parte, o evento aconteceu entre os dias 09 e 17 de julho sob a temática “Quando a voz dá vida ao texto”, um pouco menor se comparado a edições anteriores, mas mantendo grande quantidade de público, qualidade nas análises dos espetáculos e fomentando o intercâmbio artístico e acadêmico entre teatreiros e estudantes de diferentes estados brasileiros e do exterior. Cortinas fechadas, queremos agora refletir, na qualidade de espectadores que fomos, sobre o 23° Fitub e tecer algumas considerações a respeito do caráter estratégico do festival para a FURB e para o desenvolvimento cultural da região.
Financiamento e público.
Apesar das inúmeras dificuldades motivadas pela falta de apoio financeiro e pela incapacidade do poder público municipal e estadual, bem como do empresariado local, compreender a importância e o significado de um evento como esse, o Festival Internacional de Teatro Universitário de Blumenau conta ainda com grande prestígio acadêmico e audiência, esta última podendo ser medida pela quantidade e variedade de público que acompanhou os espetáculos. Sessões lotadas e disputa por ingressos já são rotina para aqueles que se habituaram a acompanhar o Fitub, o que demonstra o grande interesse da comunidade em acessar bens culturais, principalmente quando oferecidos a preços populares. Impressionou-me constatar a grande quantidade de pessoas que compareceram às peças, ainda que em horários pouco habituais (houve sessões no período da tarde e à meia-noite), bem como a fidelidade de um público que todas as tardes participou das análises dos espetáculos. Se considerarmos que na semana do Fitub os termômetros em Blumenau registraram temperaturas muito baixas e o clima nos brindou com chuva e grande umidade, a participação de um público que abriu mão da sua tendência à hibernação para participar das atividades no Teatro Carlos Gomes e na Fundação Cultural chama ainda mais atenção.
Quanto ao prestígio acadêmico, este pode ser medido pelo interesse que o Fitub provoca junto às universidades brasileiras e ibero-americanas. Segundo informações da organização do evento, inscreveram-se para a seleção 54 grupos de teatro universitário nacionais (7 selecionados) e 13 grupos internacionais (apenas 3 selecionados). Ouvindo também as manifestações de diversos atores e professores oriundos de diferentes lugares, ficou evidente o significado do Fitub para os estudantes de artes cênicas. Entre estes é praticamente unânime a opinião de que o Fitub proporciona um espaço privilegiado de exibição da produção teatral universitária nacional e, principalmente, de troca de experiências por meio do exercício da análise e da crítica. Neste sentido, o Fitub insere a FURB e a cidade de Blumenau no cenário artístico e acadêmico nacional, constituindo-se assim enquanto evento estratégico para a Universidade, para o aprofundamento da qualidade da produção teatral local e até mesmo para o desenvolvimento de um turismo cultural diferenciado no Vale do Itajaí, potencial até o momento praticamente ignorado pelo poder público.
As dimensões que o Fitub atingiu, bem como a quantidade de pessoas que atrai, legitimam a necessidade da sua manutenção, ampliação e aprimoramento, o que não pode ser feito sem o devido financiamento e sua inserção na agenda cultural do município e do Estado. Torna-se assim necessário um esforço em torno da organização e promoção do festival que reúna, além da FURB, a Fundação Cultural de Blumenau, a Secretaria Municipal de Turismo, a Secretraria de Desenvolvimento Regional, a Associação Blumenauense de Teatro, o Conselho Municipal de Cultura, além de outras entidades da sociedade civil organizada. Em 2008 o Festival de Teatro deu um passo qualitativo ao assumir o caráter internacional, cabe agora consolidar este caráter e ampliar sua inserção no cenário artístico e acadêmico nacional a fim de que suas potencialidades possam ser plenamente exploradas.
Espetáculos
O 23° Fitub apresentou 22 espetáculos de teatro. Além das peças que integraram as duas mostras competitivas (Mostra Universitária Nacional e Mostra Universitária Ibero-Americana), o evento contou ainda com 4 espetáculos convidados, além dos espetáculos do Palco Sobre Rodas e da Mostra Blumenauense de Teatro. No conjunto das mostras, Blumenau recebeu grupos do Chile, Colômbia, Argentina, Portugal, São Paulo, Ceará, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, além dos grupos catarinenses e dos seis grupos locais.
Ao observarmos os espetáculos das mostras universitárias, é possível constatar a grande influência que textos e autores canonizados pela crítica ainda exercem sobre os estudantes de artes cênicas. Bertold Brecht, Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Sófocles e Ésquilo são alguns destes autores que recorrentemente têm seus textos encenados nos palcos do Fitub, e que marcaram presença também nesta edição. A opção por representar textos de autores cuja qualidade e importância para a história do teatro já está consolidada não representa, necessariamente, um problema. Entretanto, há de se considerar o teatro enquanto manifestação artística viva e capaz de dialogar com o tempo e a sociedade presentes. Textos clássicos têm sua importância para a história, mas sua representação nos palcos contemporâneos só faz sentido se atualizados, se capazes de ressignificar nossas experiências emergentes. Diretores e atores necessitam antropofagizar os clássicos, superar o mito do autor canonizado (como no caso de Brecht, por exemplo), matá-lo uma segunda vez, para então produzir um espetáculo que não seja pastiche de si mesmo. O que presenciamos, entretanto, nesta edição do Fitub, foi o zelo excessivo, o extremo pudor com que a maioria dos grupos de teatro trataram o texto original. Talvez o espetáculo que melhor exemplifique o que estamos dizendo aqui tenha sido a montagem do Centro de Produção Teatral da Escola de Belas Artes da UFRJ, que encenou “A Serpente”, de Nelson Rodrigues. Ao se preocuparem em reproduzir fielmente a história trágica de Guida, que oferece seu marido à irmã para evitar o suicídio desta, os atores não apresentaram absolutamente nada de novo, tornando o texto, intenso e repleto de sutilezas, em algo insosso e incapaz de dialogar com a plateia. Até mesmo “Ascensão e queda da cidade de Mahagonny”, escrita originalmente por Bertold Brecht em 1927, cuja montagem realizada pela Cia. Acidental da Unicamp recebeu o prêmio de melhor espetáculo do 23° Fitub, escorregou para o panfletarismo, na medida em que o discurso que funcionava plenamente na sociedade fascista da década de 1930 é incapaz de ecoar da mesma forma no pós-industrialismo que caracteriza nossa sociedade ocidental do início do século XXI. O mesmo podemos dizer a respeito do espetáculo “A grande parada (ou o que resta dela)”, também uma adaptação de um texto de Brecht, produzida pelo grupo “VisCera Teatro” e incluída na Mostra Blumenauense. Apesar do subtítulo da peça (“ou o que ainda resta dela”) indicar para um tempo diferente daquele em que originalmente estão situados texto, cenário e personagens, a montagem tem dificuldades em descolar o público das imagens pré-concebidas de uma Alemanha nazista, dos campos de concetração e dos clichês de uma luta de classes romântica. Fica a impressão que está a se assistir a uma peça com preocupações de relato histórico, e não a uma provocação aos tempos atuais, onde os temas e preocupações de Bertold Brecht ainda se fazem presentes. Assim, “A grande parada” perde um caráter de ineditismo que poderia explorar, principalmente se consideramos o contexto social e cultural do Vale do Itajaí em que a montagem e o grupo “VísCera” se inserem.
Talvez o ponto alto da Mostra Nacional tenha sido o espetáculo “Canoeiros da Alma”, de autoria de Luís Carlos Leite e apresentado pelo “Coletivo Teatro da Margem”, da Univ. Fed. de Uberlândia. O espetáculo não é daqueles a que se assiste, mas do qual se participa. Não há poltronas, arquibancada ou palco, mas um imenso pátio mergulhado na penumbra e no qual atores e público se misturam, os focos de luz indicando pontos de tensão dramática criados a partir do estudo do universo do Vale do Jequitinhonha e para onde cada espectador é convidado a dirigir sua atenção: um grupo jogando cartas, uma procissão, um oratório, os vendedores ambulantes, o suicida, os noivos, as lavadeiras, a sensualidade da vida e a violência da morte, velas, gritos, voz e força, enfim, todo um universo complexo e do qual é impossível se apropriar enquanto totalidade una. O que se tem é o tumulto da vida real, a azáfama de uma feira, a solidão de multidão, mas que a peça procura problematizar quando propõe histórias que possuem voz e rosto, histórias de gente anônima das quais sequer supomos existência. Um espetáculo forte e comovente, que contou com a entrega dos atores e com o reconhecimento do público.
Destaque também para “Hay amor”, do grupo “Os Geraldos” da Unicamp. Apesar de não ter recebido nenhum prêmio e de não ter ousado nenhuma linguagem inédita, o espetáculo, com seu humor simples e o uso de imagens facilmente reconhecidas pelo imaginário do público, agradou a plateia, arrancando muitas gargalhadas e aplausos. Se “Hay amor” não apresentou a experimentação que se espera de uma peça universitária, por outro lado mostrou que um espetáculo que visa tão somente a fruição ainda é possível.
Quanto aos espetáculos da “Mostra Ibero-Americana”, arrisco-me a dizer que o destaque tenha sido mesmo o figurino e o cenário de “Eteocles, Antígona, Polinices y otros hermanos”, da Universidade de Antioquia, Colômbia, e a preparação vocal dos atores. “Ofelia”, do grupo “Las Rayadas”, da Argentina, frustrou sob todos os aspectos; e o espetáculo “Tartarugas e migração”, da Universidade Nova de Lisboa, apesar de receber o prêmio do público, brindado que foi por imagens de grande apelo poético, mostrou grandes fragilidades narrativas.
Mostra blumenauense e considerações finais.
Quero concluir ressaltando a importância da Mostra Blumenauense no contexto do Fitub e a necessidade de se ampliar a sua inserção no festival. Considerando que o Fitub, este ano, concentrou a maior parte dos seus espetáculos no Teatro Carlos Gomes, a apresentação das peças da Mostra Blumenauense na Fundação Cultural de Blumenau deu um caráter marginal às peças locais, o que foi motivo de críticas. A inserção dos espetáculos blumenauenses no mesmo espaço das mostras nacionais e internacionais possivelmente aprofundaria o intercâmbio entre os grupos e tornaria mais conhecido o trabalho que vem sendo desenvolvido em nível regional. Integrar ainda a Associação Blumenauense de Teatro na organização do Festival e pensar alternativas para que os espetáculos locais possam também ser analisados criticamente (tal qual o que ocorre com as peças universitárias), aprofundaria esta inserção e contribuiria para a reflexão a respeito do fazer artístico local.
Por fim, apontar ainda a importância do Fitub. Um evento que capitaliza simbolicamente a cidade, inserindo-a no circuito de teatro universitário brasileiro, deslocando para Blumenau centenas de atores, professores, técnicos e estudantes do Brasil e do exterior, contribuindo para o desenvolvimento profissional de artistas, técnicos e produtores culturais e constituindo um corpo crítico local que possa não só produzir espetáculos de qualidade, gerando renda e trabalho, bem como estimulando o desenvolvimento de um público local cada vez mais exigente e sedento de produção artística. Eis o significado do Fitub e a necessidade da sua existência.
* Viegas Fernandes da Costa é editor do Sarau Eletrônico.
** Fotos de Daniel Zimmermann / CCM Furb
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